Madalena_Daltro

Madalena_Daltro

Madalena Daltro Fonseca nasceu no Rio de Janeiro. É escritora e palestrante, têm cinco livros publicados, diversos artigos e participações em antologias. É mestre em Gestão e Auditoria Ambiental.

1973-07-22 São Paulo
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Você guarda mágoa, ou é a mágoa que te guarda? (Crônica)


Estive revisitando o Livro de Mágoas da escritora portuguesa Florbela da Conceição Espanca.
Aí está uma pessoa que soube sofrer com elegância!
E ela sabia exatamente para quem escrevia; um seleto público de leitores sofredores, daqueles que encaram a dor de frente, olhos nos olhos, estando ou não com medo, esses não saberiam sorrir, guardando dentro de si, um gesto de covardia.

Florbela diz nos primeiros versos desse livro:

"Este livro é de mágoas.

Desgraçados que no mundo passais, chorai ao lê-lo!

Somente a vossa dor de Torturados pode,

talvez, senti-lo... e compreendê-lo..."

Então você me perguntaria, e quem é que pensa em elegância na hora do desespero? Bem, não é na hora exata, é depois, é no momento da mágoa, na hora de remoer, nessa hora tem gente que mastiga a mágoa com a boca aberta, e fica ali ruminando, ruminando, mas há os que mastigam elegantemente, de boca fechada, e com o garfo deposita, calmamente, o caroço no prato.

E como falar de mágoas, dores e elegância sem se lembrar, também, dos poemas de Francisco Otaviano e Paulo Leminski? Quase impossível! Eles são dois, dos muitos escritores brasileiros que também souberam, cada um à sua maneira, sofrer com elegância. Dos seus caroços brotaram versos para os quais me faltam os adjetivos, pois transcendem as palavras, as dores, as mágoas... Atingem o âmago da alma, como este de Paulo Leminski:

"um homem com uma dor

é muito mais elegante

caminha assim de lado

como se chegando atrasado

andasse mais adiante


carrega o peso da dor

como se portasse medalhas

uma coroa, um milhão de dólares

ou coisas que os valha


ópios édens analgésicos

não me toquem nessa dor

ela é tudo que me sobra

sofrer, vai ser minha última obra"


E este do Otaviano:

"Quem passou pela vida em branca nuvem,

E em plácido repouso adormeceu;

Quem não sentiu o frio da desgraça,

Quem passou pela vida e não sofreu

Foi espectro de homem - não foi homem,

Só passou pela vida - não viveu."

Os poemas falam por si. E por isso, fico até sem jeito de continuar escrevendo depois de transcrever versos dessa magnitude.
Mas preciso dizer que ao longo da vida, tenho percebido que as pessoas vêm perdendo a elegância do sofrimento, hoje as pessoas sofrem feio, como se feio fosse o sofrer, quando feio é se mostrar alegre, sem o ser...
Usando o jargão contemporâneo: 'para que tá feio!'
Deixe a mágoa guardar você, te proteger pela experiência de vida, mas não guarde mágoa, não a remoa.
Quanto mais se tenta sufocar a dor, mais tempo passamos remoendo, é preciso tratar a dor, resolver o problema, encarar a dor de frente, mas às vezes o problema só se resolve com a quietude do repouso, com o silêncio.
Nesse tempo de silêncio nós damos tempo para a alegria se nutrir, ganhar sustância e ressurgir com força, com vontade e com verdade.
Para isso é importante ir alimentando a mente com mais arte, com boa música, com bons livros, com mais poesia, esses são bons nutrientes para a mente, são os recursos que ela vai lançar mão na hora do aperto.

É preciso ter bons ingredientes estocados na mente para dar a volta por cima; mas se a pessoa vai lá e estrangula o sofrimento, não vive a 'quarentena' da dor, da mágoa, do luto, ela perde os frutos dos seus caroços, num esforço vão de impor uma alegria pálida.
E acabam estocando mágoa e sofrendo sem elegância.


Madalena Daltro Fonseca.
Coluna: Cultura & Literatura
Jornal: Folha Valle
http://folhavalle.com/voce-guarda-magoa-ou-e-magoa-que-te-guarda/
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