Gil Vicente

Gil Vicente
Gil Vicente é considerado o primeiro grande dramaturgo português, além de poeta de renome. Enquanto homem de teatro, parece ter também desempenhado as tarefas de músico, ator e encenador.
Nasceu a 1465 (Guimarães)
Morreu em 1536 (Évora)
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Dramaturgo e poeta português. Desconhecem-se dados seguros acerca da sua biografia. Eventualmente, terá nascido em Guimarães. Sabe-se que, desde inícios do século XVI, se encontrava na corte, onde organizava festas e comemorações de acontecimentos importantes (como nascimentos ou esponsais). Não é certa a sua identificação com o ourives Gil Vicente, autor da célebre custódia de Belém, nem com um mestre da balança na Casa da Moeda, do mesmo nome. Como poeta lírico, encontra-se representado no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende. Como dramaturgo, conservam-se hoje quarenta e quatro peças suas, de vários géneros. A circulação da sua obra fazia-se, em parte, através de folhetos impressos, em literatura de cordel, datando a primeira compilação das suas peças, a Compilaçam de todalas obras de Gil Vicente (da responsabilidade do filho, Luís Vicente), de 1562. No entanto, é de salientar que alguns dos títulos do escritor foram proibidos ou expurgados pela censura inquisitorial, estando sete deles incluídos no Index de 1551. A divisão das peças de Gil Vicente em géneros não é pacífica nem estanque. Luís Vicente acrescentou aos três géneros considerados pelo pai — obras de devoção, farsas e comédias — um quarto, a tragicomédia. No entanto, a classificação varia consoante o critério tomado, podendo considerar-se a existência de vários tipos de autos (de moralidade, como o Auto da Alma e a Trilogia das Barcas, cavaleirescos e pastoris), farsas (com destaque para a Farsa de Inês Pereira) e alegorias de temas profanos. No entanto, muitas vezes os géneros interpenetram-se. Gil Vicente encontra-se no culminar do período medieval do teatro europeu. Não estando ligado às tradições peninsulares de representação da Idade Média que hoje se conhecem, senão por certos aspectos pontuais, acabou por marcar, ele mesmo, o início do teatro literário português. Assim, a par de alguns elementos populares (como o tipo do Parvo, a inclusão de aspectos folclóricos, etc.), encontram-se no seu teatro elementos cortesãos e palacianos. A ausência da estruturação e dos efeitos típicos do teatro clássico é colmatada por uma riqueza dramática invulgar. A pluralidade das suas fontes e a diversidade da concepção das peças contribuem para tornar o seu teatro vivo e actual. Em termos de pensamento, Gil Vicente apresenta ora a defesa, ora a crítica da mentalidade medieval de cruzada, denunciando por vezes a cobiça existente por trás desse espírito. É, no entanto, um representante da concepção religiosa medieval ligada ao sentido e valor da vida humana no mundo. Ao mesmo tempo, assume certas perspectivas menos ortodoxas dos debates teológicos do século XVI, nomeadamente algumas tendências próprias da ideologia da Reforma na sua crítica à corrupção da Igreja. O teatro vicentino é, acima de tudo, um teatro de sátira e de ideias. As personagens representam tipos humanos e sociais, uns violentamente criticados (como o frade ou o escudeiro), e outros que denunciam as vítimas de corrupção e do parasitismo de certas classes (como o lavrador). A sátira envolve todas as classes sociais: o clero, devasso e descuidado do cumprimento dos seus deveres religiosos (Auto da Barca do Inferno, Farsa do Clérigo da Beira e Barca da Glória); a nobreza (por exemplo, no Auto da Barca do Inferno) e o povo (por exemplo no Auto da Feira). São ainda tipificados e criticados comportamentos como as dissensões religiosas da Igreja (Auto da Feira, Sermão de Abrantes), a corrupção da Justiça (Juiz da Beira, Auto da Barca do Inferno), a ambição desmedida que comandava os descobrimentos e a corrupção social e moral que estes provocavam (Auto da Índia), o viver acima das possibilidades económicas (Farsa dos Almocreves), a exploração dos pequenos pelos grandes (Auto da Barca da Glória) e tipos sociais ou profissionais como os escudeiros pelintras (Quem Tem Farelos?), os médicos incompetentes (Farsa dos Físicos), as alcoviteiras (Auto da Barca do Inferno, Auto da Barca do Purgatório, Farsa de Inês Pereira), os criados maldizentes (Auto da Índia, Quem Tem Farelos?) e o velho apaixonado (O Velho da Horta). Frequentemente alegóricos, os seus autos colocam também em cena figuras mitológicas (como Mercúrio) ou teológicas (como a Alma, ou Roma) que ilustram determinadas concepções do mundo. Gil Vicente retrata, pois, a sociedade portuguesa do seu tempo, em todos os seus vícios e impulsos, num registo de valor incomensurável para o conhecimento da época. Do ponto de vista poético, é notável a sua capacidade de captar as mais diferentes tonalidades e registos de linguagem — a linguagem típica de cada grupo social, de cada atitude, em diálogos ou monólogos extremamente vivos que os definem exemplarmente. Consegue exprimir, em tom adequado, tanto as mais elevadas vivências espirituais, como o sofrimento dramático, a manha ou a inocência de certas personagens, ou ainda a força viva da natureza, em elementos que a personificam. Não sendo um inovador (recorre sobretudo à métrica tradicional), recolhe a vivacidade da linguagem coloquial na sua variedade e no seu poder sugestivo. Entre as suas peças mais célebres contam-se o Monólogo do Vaqueiro (1502, o seu primeiro texto dramático, escrito para comemorar o nascimento do futuro D. João III), o Sermão de Abrantes (1506), o Auto da Índia (1509, crítica da corrupção de costumes ligada à expansão), o Auto da Fé (1510), Farsa do Velho da Horta (1512), Moralidade dos Quatro Tempos (1513), Moralidade da Sibila Cassandra (1513), Auto da Exortação da Guerra (1514), Quem tem Farelos? (1515), Auto de Mofina Mendes (1515), Autos das Barcas (1517, 1518, 1519), Moralidade da Alma (1518), Auto da Fama (1520), Comédia das Cortes de Júpiter (1521), Comédia de Rubena (1521), Auto das Ciganas (1521), Comédia de Dom Duardos (1522), Farsa de Inês Pereira (1523), Auto em Pastoril Português (1523), Comédia de Amadis de Gaula (1523), Comédia do Viúvo (1524), Farsa dos Físicos (1524), Farsa do Juiz da Beira (1525 ou 1526), Moralidade da Feira (1526), Nau de Amores (1527), Farsa dos Almocreves (1527), Comédia Pastoril da Serra da Estrela (1527), Auto das Fadas (1527), Auto da Festa (1527 ou 1528), Comédia do Inverno e Verão (1529), Farsa do Clérigo da Beira (1529 ou 1530), Auto da Lusitânia (1532), Romagem dos Agravados (1533) e Auto da Cananeia (1534). A sua última peça conhecida, Floresta de Enganos, data de 1536. Síntese do espírito medieval e dos inícios do humanismo, Gil Vicente é figura ímpar da tendência lírica, sentimental, representada por outros poetas, como Bernardim Ribeiro. Deu origem à chamada escola vicentina, mas o brilho e a força da sua obra dramática nunca foram atingidos pelos autores que na sua tradição se filiaram.