Affonso Romano de Sant'Anna

Limites do Amor


Condenado estou a te amar
nos meus limites
até que exausta e mais querendo
um amor total, livre das cercas,
te despeça de mim, sofrida,
na direção de outro amor
que pensas ser total e total será
nos seus limites da vida.

O amor não se mede
pela liberdade de se expor nas praças
e bares, em empecilho.
É claro que isto é bom e, às vezes,
sublime.
Mas se ama também de outra forma, incerta,
e este o mistério:

- ilimitado o amor às vezes se limita,
proibido é que o amor às vezes se liberta.

A Coisa Pública e a Privada


Entre a coisa pública
e a privada
achou-se a República
assentada.

Uns queriam privar
da coisa pública,
outros queriam provar
da privada,
conquanto, é claro,
que, na provação,
a privada, publicamente,
parecesse perfumada.

Dessa luta intestina
entre a gula pública e a privada
a República
acabou desarranjada
e já ninguém sabia
quando era a empresa pública
privada pública
ou
pública privada.

Assim ia a rês pública: avacalhada
uma rês pública: charqueada
uma rês pública, publicamente
corneada, que por mais
que lhe batessem na cangalha
mais vivia escangalhada.

Qual o jeito?
Submetê-la a um jejum?
Ou dar purgante à esganada
que embora a prisão de ventre
tinha a pança inflacionada?

O que fazer?
Privatizar a privada
onde estão todos
publicamente assentados?
Ou publicar, de uma penada,
que a coisa pública
se deixar de ser privada
pode ser recuperada?

— Sim, é preciso sanear,
desinfetar a coisa pública,
limpar a verba malversada,
dar descarga na privada.

Enfim, acabar com a alquimia
de empresas públicas-privadas
que querem ver suas fezes
em ouro alheio transformadas.


In: SANT'ANNA, Affonso Romano de. A poesia possível. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. Poema integrante da série Aprendizagem de História

A Implosão da Mentira ou o Episódio do Riocentro


1

Mentiram-me. Mentiram-me ontem
e hoje mentem novamente. Mentem
de corpo e alma, completamente.
E mentem de maneira tão pungente
que acho que mentem sinceramente.

Mentem, sobretudo, impune/mente.
Não mentem tristes. Alegremente
mentem. Mentem tão nacional/mente
que acham que mentindo história afora
vão enganar a morte eterna/mente.

Mentem. Mentem e calam. Mas suas frases
falam. E desfilam de tal modo nuas
que mesmo um cego pode ver
a verdade em trapos pelas ruas.

Sei que a verdade é difícil
e para alguns é cara e escura.
Mas não se chega à verdade
pela mentira, nem à democracia
pela ditadura.


Publicado no livro Política e paixão (1984).

In: SANT'ANNA, Affonso Romano de. A poesia possível. Rio de Janeiro: Rocco, 198

A Bela do Avião


Mereço tocar em teus cabelos,
loira e anelada mulher
que não me conheces
e estás sentada a dois metros de mim neste avião.
Te contemplo com intimidade. Sei
teus contornos e perfumes.
Reclinas teu assento para dormir
e fechados os olhos viajas
para alguém que te espera, ou não,
sem saber que eu merecia tocar em teus cabelos,
em tua boca perfeita,
teu sublime nariz,
sem saber que conheço teu corpo
com uma intimidade absoluta.
Estou te vendo, com extremado pudor,
em peças íntimas no quarto,
sei da ponta de teus seios
e do grito que lanças ao gozar.
Como deve ser importuno
carregar continuamente
essa beleza
publicamente cobiçada!
Poderia te falar
mas te sentirias imediatamente punida
por seres linda.
Vai, colhe poemas, cobiças e suspiros
à tua passagem,
pois carregas o fastio da beleza
esse ornamento difícil de ostentar.
Nunca saberás que um poeta
assim te contemplou.
Nunca saberás que estás aqui descrita.
Nunca poderás te valer destes meus versos,
quando, sendo bela, chorares como as feias
e aviltada quiseres morrer
na hora da traição.

A Letra E a Morte


Para Fausto Henrique
Meu amigo morreu
e eu estava ao telefone encomendando estantes para os livros.
Quem me dava a notícia
explicava como o câncer devorou-lhe o fígado
em um mês,
enquanto minha mulher do outro lado da sala
perguntava se eu ia montar a árvore de Natal.
Volto pesaroso ao escritório
lembrando o amigo que restaurava obras raras
e mal repouso a tristeza e os olhos nas montanhas
outro telefonema
cobra-me uma conferência na Argentina.
Visitarei o corpo do amigo na capela 5 às três da tarde
mas não poderei acompanhar-lhe o sepultamento
porque no mesmo horário
estarei numa livraria
lançando um novo livro:
– mausoléu de palavras vivas –
celebrando o amor e a morte.

A Maravilha do Mundo


Quem disse
que são sete as maravilhas do mundo?
Quem disse
quais são? onde estão?
E se as maravilhas do mundo
forem oito
ou vinte e sete
ou incontáveis
como as que encontro sempre no seu corpo?