Henriqueta Lisboa

A Menina Selvagem


Para Ângela Maria

A menina selvagem veio da aurora
acompanhada de pássaros,
estrelas-marinhas
e seixos.
Traz uma tinta de magnólia escorrida
nas faces.
Seus cabelos, molhados de orvalho e
tocados de musgo,
cascateiam brincando
com o vento.
A menina selvagem carrega punhados
de renda,
sacode soltas espumas.
Alimenta peixes ariscos e renitentes papagaios.
E há de relance, no seu riso,
gume de aço e polpa de amora.

Reis Magos, é tempo!
Oferecei bosques, várzeas e campos
à menina selvagem:
ela veio atrás das libélulas.


Publicado no livro Lírica (1958). Poema integrante da série O Menino Poeta, 1939/1941.

In: LISBOA, Henriqueta. Obras completas I: poesia geral, 1929/1983. Pref. Fábio Lucas. São Paulo: Duas Cidades, 1985. p.96

A Face Lívida [Não a face dos mortos


Não a face dos mortos.
Nem a face
dos que não coram
aos açoites
da vida.
Porém a face
lívida
dos que resistem
pelo espanto.

Não a face da madrugada
na exaustão
dos soluços.
Mas a face do lago
sem reflexos
quando as águas
entranha.

Não a face da estátua
fria de lua e zéfiro.
Mas a face do círio
que se consome
lívida
no ardor.


Publicado no livro A Face Lívida: poesia, 1941/1945 (1945).

In: LISBOA, Henriqueta. Obras completas I: poesia geral, 1929/1983. Pref. Fábio Lucas. São Paulo: Duas Cidades, 198

A Face Lívida [De súbito cessou a vida


.De súbito cessou a vida.
Foram simples palavras breves.
Tudo continuou como estava.

O mesmo teto, o mesmo vento,
o mesmo espaço, os mesmos gestos,
Porém como que eternizados.

Unção, calor, surpresa, risos
tudo eram chapas fotográficas
há muito tempo reveladas.

Todas as cousas tinham sido
e se mantinham sem reserva
numa sucessão automática.

Passos caminhavam no assoalho,
talheres batiam nos dentes,
janelas se abriam, fechavam.

Vinham noites e vinham luas,
madrugadas com sino e chuva.
Sapatos iam na enxurrada.

Meninas chegavam gritando.
Nasciam flores de esmeralda
no asfalto! mas sem esperança.

Jornais prometiam com zelo
em grandes tópicos vermelhos
o fim de uma guerra. Guerra?...

Os que não sabiam falavam.
Quem não sentia tinha o pranto.
(O pranto era ainda o recurso
de velhas cousas coniventes.)

Nem o menor sinal de vida.
Tão-só no fundo espelho a face
lívida, a face lívida.


Publicado no livro A Face Lívida: poesia, 1941/1945 (1945).

In: LISBOA, Henriqueta. Obras completas I: poesia geral, 1929/1983. Pref. Fábio Lucas. São Paulo: Duas Cidades, 198

A Face Lívida [Esse despojamento


Esse despojamento
esse amargo esplendor.
Beleza em sombra
sacrifício incruento.

A mão sem jóias
descarnada
na pureza das veias.
A voz por um fio
desnuda
na palavra sem gesto.

O escuro em torno
e a lucidez
violenta lucidez terrível
batida de encontro ao rosto
como uma ofensa física.

Na imensidade sem pouso,
olhos duros
de pássaro.


Publicado no livro A Face Lívida: poesia, 1941/1945 (1945).

In: LISBOA, Henriqueta. Obras completas I: poesia geral, 1929/1983. Pref. Fábio Lucas. São Paulo: Duas Cidades, 198

A Face Lívida [Lábios que não se abrem, lábios


Lábios que não se abrem, lábios
com seu segredo
calado

Segredo no ermo da noite
resiste à rosa dos ventos
calado.

Flauta sem a vibração
do sopro.
Luar e espelho, frente a frente,
em calada
vigília.

Fria espada unida
ao corpo.

Resto de lágrimas sobre
lábios
calados.

Borboleta da morte
em sorvo
pousada à flor dos lábios
calados
calados.


Publicado no livro A Face Lívida: poesia, 1941/1945 (1945).

In: LISBOA, Henriqueta. Obras completas I: poesia geral, 1929/1983. Pref. Fábio Lucas. São Paulo: Duas Cidades, 198