João Miguel Fernandes Jorge

O mar já não era para mim suficiente


O mar já não era para mim suficiente.
Fazia-me falta um rio
um rio sob sombra das árvores.

É difícil a meio da música
suportar a luz do café.

Vivemos sobre a terra


Vivemos sobre a terra. Apresento-te
a nossa casa, os nomes que damos ás coisas,
as honras que nos são destinadas,
este corpo de sangue e nervos.
Sobre ele que julgamos vivo
dizes minha razão. A da vida
e a de outras coisas que se percebem.

Os barcos retomam lentos o seu lugar
em volta de um coração marinho.
Como se morre aqui?

Importa que não haja ilusões sobre este ponto


Importa que não haja ilusões sobre este ponto: é
que todos podemos morrer de sede em pleno mar.

A vila


A vila
o canto longínquo do tempo
deixa-me para sempre. É pouco.
nas dunas crescem as flores novas.

Como conversámos aquela noite


Era o quarto de azulejo.
O cheiro do tabaco.
O cão
os olhos para que visse o de fora.
Cego
conhecendo a terra sem se conhecer.
Em nós
fizémos sair a lua o sol.
Em todos
o visível o invisível.

Éramos nós e estávamos no fim do mundo.

Como conversámos aquela noite. Era o quarto de azulejo
a mesa de braseira o cheiro do tabaco.
Andara sem destino durante meses
e, aquela noite surgia com o simples virar a
página de um livro,
quando uma palavra torna claro o enredo de longos capítulos.
Assim duas vidas se revelam.

Éramos nós. Estávamos no fim do mundo, quero dizer,
encontrei-me de súbito na minha vida,
na sua vida.

Esta noite não podemos falar


Esta noite não podemos falar.

Que poderíamos dizer?Os sinais deste inverno

esta chuva jogo enigmático mobilizando

nossas vidas medos paixões

nossas acções amores nossa morte.

Os arquivos deste ritmo o segredo destas peças

antigas destas regras nossa vida nossa vida

até ao fim da noite como podemos então

nada dizer?Que fazemos nós do outro

se a serenidade não aparece quando queremos

e se queremos este espaço modos

este mortos.Impossível Equals Infinity

Klee 1932.Esta noite não podemos falar.

Na parede o retrato de Rimbaud.Os sinais.

Abrimos as portas sorrindo


ou a lata de bolos de infância.

Era uma criança pela fadiga

dos olhos, pela idade das excursões

pelas praças da cidade.

demoradas visitas de indiferença

e receio.

Um tímido sinal descendo levemente

o corpo, depois a face, os lábios

trémulos e um balbuciado “não

volto mais”.

“Está bem. Eis-me aqui ao teu lado”.

Esquecera a segunda cor do mar.

De um segundo fizera horas, mesmo que,

de ti, não tenha conseguido enumerar

senão as chaves na porta do quarto.

A próxima explosão.

Tudo é tão verdadeiro, tão claro,

neste canto de sonho.