Luís Filipe Castro Mendes

Era o último amor


Era o último amor. A casa fria,
os pés molhados no escuro chão.
Era o último amor e não sabia
esconder o rosto em tanta solidão.

Era o último amor. Quem advinha
o sabor pela escuridão?
Quem oferece frutos nessa neve?
Quem rasga com ternura o que foi verão?

Era o último amor, o mais perfeito
fulgor do que viveu sem as palavras.
Era o último amor, perfil desfeito
entre lumes e vozes passadas.

Era o último amor e não sabia
que os pés à terra nua oferecia.

ANOITECER NO GANGES


Lembras-te da «pequenina luz bruxuleante» do verso de Sena?
Anoitece no Ganges, tudo nos é tão estranho aqui, e no entanto,
vinda de onde não sabemos, de uma casa, de uma ruína, de um templo,
vem uma pequena luz chamar-nos para dizer do nosso comum destino.

Vou contar: íamos para Belur,
onde ensinaram Ramakrishna e Vivekananda,
compenetrados, atentos aos pormenores do caminho fluvial
(os ghats, o povo que lava e queima os seus mortos no rio,
com troncos e tábuas, mas sem caixão) e íamos a meditar em coisas muito sérias
e muito hindus e multiculturais.
Mas de repente tudo o que nos rodeava perdeu o seu sentido,
porque anoitecia simplesmente e uma luz nos chamava dentre o lusco-fusco.
Uma pequenina luz bruxuleante. Just a little light…
Tudo se tornou ao mesmo tempo mais comum e mais simples na sua estranheza

São momentos em que entendemos que somos da mesma gente,
neste país de tão diversa gente…
Mas só porque uma luz se acendeu na margem do Ganges
entre Calcutá e Belur – uma pequena luz vitoriosa!

Ainda a Poesia


A poesia não é feita por um nem por todos,
nem esteve nunca na rua.
A poesia está na aspereza das coisas contra nós,
tão mais nítidas ao nosso olhar isento
quanto mais doem no coração silencioso.

CALICUTE: AQUI DESEMBARCOU VASCO DA GAMA


Depois de cruzarmos rios e passarmos outras praias,
mais ao norte de Calicute,
mostraram-nos, por fim, o lugar
onde verdadeiramente ancorou a frota do Gama:
as naus ficavam ao largo
e em pequenos barcos se iam cruzando e descobrindo
os da terra e os do mar.
Uma mesquita aqui construída não deixa de ser uma homenagem irónica:
os rapazes pescam e correm pela praia, mas a nenhum ocorre
banhar-se no mar, mergulhar, nadar…
Vejo poucas mulheres. Vendem-se, porém, doces numa barraquinha.
O historiador indiano conta pormenores: vem tudo nas crónicas,
assevera,
não se entende como os ingleses se enganaram no local
e foram construir um mamarracho comemorativo, a dez quilómetros daqui!
«Basta ler as crónicas portuguesas» insiste o Professor John «para reconhecer o lugar certo».
O Samorim espera-nos! Irão os nossos pobres presentes uma vez mais
causar o seu enfado? Entramos no automóvel, agradecemos
e esperamos que desta vez corra melhor a audiência!

A CAMILO PESSANHA, PASSANDO EM JAIPUR


Uma imagem a passar pela retina
e nada mais: venham outros falar-nos de experiência,
de transformar o vivido em consciência,
de reter o que é fugaz!
Uma imagem a passar pela retina,
porque o sentido de tudo está na velocidade do carro
que me permitiu fotografar…

Bichos da terra tão pequenos


Bichos da terra tão pequenos,
esgravatando à roda do mundo,
atarantados, sem rumo: só e apenas isso,
agora e em todos os tempos.