Luís Gama

Coleirinho


Assim o escravo agrilhoado canta.
Tibulo

Canta, canta Coleirinho,
Canta, canta, o mal quebranta;
Canta, afoga mágoa tanta
Nessa voz de dor partida;
Chora, escravo, na gaiola
Terna esposa, o teu filhinho,
Que, sem pai, no agreste ninho
Lá ficou sem ti, sem vida.

Quando a roxa aurora vinha
Manso e manso, além dos montes,
De ouro orlando os horizontes,
Matizando as crespas vagas,
— Junto ao filho, à meiga esposa
Docemente descantavas,
E na luz do sol banhavas
Finas penas — noutras plagas.

Hoje, triste já não trinas,
Como outrora nos palmares;
Hoje, escravo, nos solares
Não te embala a dúlia brisa;
Nem se casa aos teus gorjeios
O gemer das gotas alvas
— Pelas negras rochas calvas —
Da cascata que desliza.

Não te beija o filho tenro,
Não te inspira a fonte amena,
Nem da lua a luz serena
Vem teus ferros pratear.
Só de sombras carregado,
Da gaiola no poleiro
Vem o tredo cativeiro,
Mágoa e prantos acordar.

Canta, canta Coleirinho,
Canta, canta, o mal quebranta;
Canta, afoga mágoa tanta
Nessa voz de dor partida;
Chora, escravo, na gaiola
Terna esposa, o teu filhinho,
Que, sem pai, no agreste ninho
Lá ficou sem ti, sem vida.


Publicado no livro Primeiras trovas burlescas de Getulino (1861).

In: GAMA, Luiz. Trovas burlescas e escritos em prosa. Org. Fernando Góes. São Paulo: Cultura, 1944. p.71-72. (Últimas gerações, 4

A Cativa


Nos olhos lhe mora,
Uma graça viva,
Para ser senhora
De quem é cativa.
CAMÕES

Como era linda, meu Deus!
Não tinha da neve a cor,
Mas no moreno semblante
Brilhavam raios de amor.

Ledo o rosto, o mais formoso
De trigueira coralina,
De Anjo a boca, os lábios breves
Cor de pálida cravina.

Em carmim rubro esgastados
Tinha os dentes cristalinos;
Doce a voz, qual nunca ouviram
Dúlios bardos matutinos.

Seus ingênuos pensamentos
São de amor juras constantes;
Entre as nuvens das pestanas
Tinha dois astros brilhantes.

As madeixas crespas, negras,
Sobre o seio lhe pendiam,
Onde os castos pomos de ouro
Amorosos se escondiam.

Tinha o colo acetinado
— Era o corpo uma pintura —
E no peito palpitante
Um sacrário de ternura.

Límpida alma — flor singela
Pelas brisas embalada,
Ao dormir d'alvas estrelas,
Ao nascer da madrugada.

Quis beijar-lhe as mãos divinas,
Afastou-mas — não consente;
A seus pés de rojo pus-me,
— Tanto pode o amor ardente!

Não te afastes, lhe suplico,
És do meu peito rainha;
Não te afastes, neste peito
Tens um trono, mulatinha!...

Vi-lhe as pálpebras tremerem,
Como treme a flor louçã
Embalando as níveas gotas
Dos orvalhos da manhã.

Qual na rama enlanguescida
Pudibunda sensitiva,
Suspirando ela murmura:
Ai, senhor, eu sou cativa!...

Deu-me as costas, foi-se embora
Qual da tarde ao arrebol
Foge a sombra de uma nuvem
Ao cair a luz do sol.


Publicado no livro Primeiras trovas burlescas de Getulino (1861).

In: GAMA, Luiz. Trovas burlescas e escritos em prosa. Org. Fernando Góes. São Paulo: Cultura, 1944. p.112-113. (Últimas gerações, 4

A um Nariz


Você perdoe,
Nariz nefando
Que eu vou cortando
E ainda fica nariz em que se assoe.
G. DE MATOS

Aí vai, leitores,
Um monstro esguio,
Que em corropio
De uma rua tem posto os moradores.

Maior que a proa
De nau de linha,
Tem camarinha
Aonde à tarde se obumbra a tocha coa,

Rinoceronte
De tromba enorme,
Mais desconforme
Do que o mero, a baleia, a catodante

Nariz bojante,
Recurvo e longo,
Que lá do Congo
Alcança o Tenerife e monte Atlante.

De raça eslava
Tremenda espiga,
E há quem diga
Que nela Polifemo cavalgava.

Nariz alado,
De cor bringela.
Que de pinguela,
Serviu no Amazonas celebrado.

E se não mente
A tradição,
De lampião
Fazia num farol da Líbia ardente.

Nariz de pau,
Com tal composto,
Que sobre o rosto
Tem forma de bandurra ou berimbau.

Cavado e torto,
Formal tripeça,
Fundido à pressa
Nas forjas de Vulcano — por aborto.

Nariz de forno,
De amplas badanas,
Que mil bananas
Aloja em cada venta, sem transtorno.

É tão famoso
O tal nariz,
Que por um triz
Não fez parte do Cabo Tormentoso.

Qual catatau
Da testa pende,
E alguém entende
Ser ninho de coruja ou picapau.

Nariz de barro,
Mas não cozido,
Que suspendido,
Sobre as grimpas da lua vai de esbarro.

De quanto fiz
Não se enraiveça;
Não enrubesça,
Que pr'a dar e vender sobra nariz.


Publicado no livro Primeiras trovas burlescas de Getulino (1861).

In: GAMA, Luiz. Trovas burlescas e escritos em prosa. Org. Fernando Góes. São Paulo: Cultura, 1944. p.58-59. (Últimas gerações, 4)

A um Fabricante de Pírulas


Exulta, ó Paulicéia, a fronte eleva
Sorri da Grécia e de Esculápio estulto,
Afronta o velho mundo, ousada rompe,
Nas aras da memória ergue o teu vulto.

Cidade eterna de prodígios altos,
Que o gênio domas de Misray potente,
Encrava em bronze com douradas letras
Teu nome excelso de poder ingente.

O Cairo, a Grécia, a Babilônia antiga,
A culta França e a Bretanha ousada,
Ouvindo a fama que o teu nome alteia,
Vacilam, tombam do letargo ao nada!

Os vultos da ciência purgatória
Osiris e Quiron, o louro Apolo,
Vencidos de terror medrosos tremem,
E as frontes curvam no gretado solo!

Quem há que possa competir contigo,
Viçoso berço de varões preclaros?
Nem Podaliros de saber profundo,
Ou d'áurea Praxítea os filhos caros!

Se alguém tentar sobrepujar teu nome,
De inveja prenhe e de letal veneno,
Soberba aponta para o vulto hercúleo
Do Pirulista de assombroso aceno.

Herói fulgente, qual não viu Atenas
Em almos dias que a ciência esmaltam;
Professor magnus de purgantes acres —
Em piruletas que curando matam!

Impando afirma — que com bravas ervas
Sarou morféia, e tudo mais que diz,
Tornou formosos carcomidos corpos,
Com pele e carne e magistral nariz.

Famintos cura de dinheiro a falta,
Cabeças ocas de juízo ausência,
Barriga dura, catarral defluxo,
A hidropisia e perenal demência!

E para assombro, do teu nome, amostra,
Em um — Correio Paulistano — antigo,
O selo, a prova desta grã-verdade,
Depois o prega em bestelhal postigo.

Caducas velhas de viver cansadas,
Que têm na cama clarabóia imensa,
Tomando as dores do doutor chanfarra
Concebem, parem, sem temer doença!

Eis troam, rugem na rotunda pança
Trovões soturnos, sibilantes ventos,
Farpados raios coruscantes ardem
Na cava estreita, em barrigais tormentos!

Tomou aquela, por debique ou luxo,
Das tais pírulas seis macitos — só!
Da pança em fora descretou bramindo
Maçada horrenda, ventania e pó!

E de improviso, por mistério oculto,
Ou providência do remédio santo,
Sentiu crescer-lhe a barrigaça a velha —
Um filho teve por fatal encanto!

Lá mais dois casos de eternal memória
Um velho rengo, uma viúva anosa;
Purgado, aquele se transforma em jovem,
A velha em moça virginal, formosa!

(...)


Publicado no livro Primeiras trovas burlescas de Getulino (1861).

In: GAMA, Luiz. Trovas burlescas e escritos em prosa. Org. Fernando Góes. São Paulo: Cultura, 1944. p.55-57. (Últimas gerações, 4

A um Nariz


Você perdoe,
Nariz nefando
Que eu vou cortando
E ainda fica nariz em que se assoe.

Gregório de Matos

Aí vai, leitores,
Um monstro esguio,
Que em corropio
De uma rua tem posto os moradores.

Maior que a proa
De nau de linha,
Tem camarinha
Aonde à tarde se obumbra a tocha coa,

Rinoceronte
De tromba enorme,
Mais desconforme
Do que o mero, a baleia, a catodante

Nariz bojante,
Recurvo e longo,
Que lá do Congo
Alcança o Tenerife e monte Atlante.

De raça eslava
Tremenda espiga,
E há quem diga
Que nela Polifemo cavalgava.

Nariz alado,
De cor bringela.
Que de pinguela,
Serviu no Amazonas celebrado.

E se não mente
A tradição,
De lampião
Fazia num farol da Líbia ardente.

Nariz de pau,
Com tal composto,
Que sobre o rosto
Tem forma de bandurra ou berimbau.

Cavado e torto,
Formal tripeça,
Fundido à pressa
Nas forjas de Vulcano — por aborto.

Nariz de forno,
De amplas badanas,
Que mil bananas
Aloja em cada venta, sem transtorno.

É tão famoso
O tal nariz,
Que por um triz
Não fez parte do Cabo Tormentoso.

Qual catatau
Da testa pende,
E alguém entende
Ser ninho de coruja ou picapau.

Nariz de barro,
Mas não cozido,
Que suspendido,
Sobre as grimpas da lua vai de esbarro.

De quanto fiz
Não se enraiveça;
Não enrubesça,
Que pr'a dar e vender sobra nariz.


do livro Primeiras trovas burlescas de Getulino (1861).