Manuel Bandeira

Poema Tirado de Uma Notícia de Jornal


João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número.
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.

Arte de Amar


Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma,
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus — ou fora do mundo.

As almas são incomunicáveis.

Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
Porque os corpos se entendem, mas as almas não.

Desencanto


Eu faço versos como quem chora
De desalento... de desencanto...
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.

Meu verso é sangue. Volúpia ardente...
Tristeza esparsa... remorso vão...
Dói-me nas veias. Amargo e quente,.
Cai, gota a gota, do coração.

E nestes versos de angústia rouca
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.
— Eu faço versos como quem morre.

Teresópolis, 1912

O Último Poema


Assim eu quereria o meu último poema
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.

Poética


Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor

Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo

Abaixo os puristas

Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis

Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo.

De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc.

Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare

— Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

A Morte Absoluta


Morrer.
Morrer de corpo e de alma.
Completamente.

Morrer sem deixar o triste despojo da carne,
A exangue máscara de cera,
Cercada de flores,
Que apodrecerão — felizes! — num dia,
Banhada de lágrimas
Nascidas menos da saudade do que do espanto da morte.

Morrer sem deixar porventura uma alma errante...
A caminho do céu?
Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?

Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,
A lembrança de uma sombra
Em nenhum coração, em nenhum pensamento.
Em nenhuma epiderme.

Morrer tão completamente
Que um dia ao lerem o teu nome num papel
Perguntem: “Quem foi?...”

Morrer mais completamente ainda,
— Sem deixar sequer esse nome.

Nu


Quando estás vestida,
Ninguém imagina
Os mundos que escondes
Sob as tuas roupas.

(Assim, quando é dia,
Não temos noção
Dos astros que luzem
No profundo céu.

Mas a noite é nua,
E, nua na noite,
Palpitam teus mundos
E os mundos da noite.

Brilham teus joelhos,
Brilha o teu umbigo,
Brilha toda a tua
Lira abdominal.

Teus seios exíguos
— Como na rijeza
Do tronco robusto
Dois frutos pequenos —

Brilham.) Ah, teus seios!
Teus duros mamilos!
Teu dorso! Teus flancos!
Ah, tuas espáduas!

Se nua, teus olhos
Ficam nus também:
Teu olhar, mais longe,
Mais lento, mais líquido.

Então, dentro deles,
Bóio, nado, salto,
Baixo num mergulho
Perpendicular.

Baixo até o mais fundo
De teu ser, lá onde
Me sorri tu'alma
Nua, nua, nua...

...Inspiração coisa nenhuma. Precisa ter


...Inspiração coisa nenhuma. Precisa ter inspiração pra atravessar a rua, senão você morre atropelado.

"Casa-Grande & Senzala"


"Casa-Grande & Senzala"
Grande livro que fala
Desta nossa leseira
Brasileira.

Mas com aquele forte
Cheiro e sabor do Norte
— Dos engenhos de cana
(Massangana!)

Com fuxicos danados
E chamegos safados
De mulecas fulôs
Com sinhôs!

A mania ariana
Do Oliveira Viana
Leva aqui a sua lambada
Bem puxada.

Se nos brasis abunda
Jenipapo na bunda,
Se somos todos uns
Octoruns,

Que importa? É lá desgraça?
Essa história de raça,
Raças más, raças boas
— Diz o Boas —

É coisa que passou
com o franciú Gobineau.
Pois o mal do mestiço
Não está nisso.

Está em causas sociais,
De higiene e outras que tais:
Assim pensa, assim fala
Casa Grande & Senzala.

Livro que à ciência alia
A profunda poesia
Que o passado revoca
E nos toca

A alma de brasileiro,
Que o portuga femeeiro
Fez e o mau fado quis
Infeliz!

A Afonso


Recebi o seu telegrama,
Afonso. Obrigado, obrigado:
Sempre é bom ganhar um agrado
Dos amigos a quem mais se ama.

Gastão gentil como uma dama,
Esse merece ser chamado
Pinheiro, como você o chama.
E Otávio, nunca assaz louvado.

Não me sinto pinheiro, Afonso,
Eu velho bardo, entre mil vários,
À espera da hora do responso.

Sou apenas um setentão
Adido à estranha legação
Dos pinheiros septuagenários.

A Alphonsus de Guimaraens Filho


Scorn not the sonnet, disse o inglês. Ouviste
O conselho do poeta e um dia, quando
Mais o espinho pungiu da ausência triste,
O primeiro soneto abriu cantando.

Musa do verso livre, hoje ela insiste
Na imortal forma, da paterna herdando.
Todos em louvor dessa que ora assiste
Em teu lar, dois destinos misturando.

No molde exíguo, onde infinita a mágoa
Humana vem caber, como o universo
A refletir-se numa gota d'água,

Disseste o mal da ausência. E ais e saudades
E vigílias e castas soledades
Choram lágrimas novas no teu verso.

Petrópolis, 5.1.1944

41


À quarante et un an (c'est mon àge)!
Je n'ai pas d'enfant. Dieu m'assiste!
Je suis seul. Cela me soulage
Tout en me laissant un peu triste.