As Pombas
Vai-se a primeira pomba despertada...
Vai-se outra mais... mais outra... enfim dezenas
De pombas vão-se dos pombais, apenas
Raia sanguínea e fresca a madrugada...
E à tarde, quando a rígida nortada
Sopra, aos pombais de novo elas, serenas,
Ruflando as asas, sacudindo as penas,
Voltam todas em bando e em revoada...
Também dos corações onde abotoam,
Os sonhos, um por um, céleres voam,
Como voam as pombas dos pombais;
No azul da adolescência as asas soltam,
Fogem... Mas aos pombais as pombas voltam,
E eles aos corações não voltam mais...
In: CORREIA, Raimundo. Poesias completas. Org. pref. e notas Múcio Leão. São Paulo: Ed. Nacional, 1948. v.2, p.3Anoitecer
A Adelino Fontoura
Esbraseia o Ocidente na agonia
O sol... Aves em bandos destacados,
Por céus de oiro e de púrpura raiados
Fogem... Fecha-se a pálpebra do dia...
Delineiam-se, além, da serrania
Os vértices de chama aureolados,
E em tudo, em torno, esbatem derramados
Uns tons suaves de melancolia...
Um mundo de vapores no ar flutua...
Como uma informe nódoa, avulta e cresce
A sombra à proporção que a luz recua...
A natureza apática esmaece...
Pouco a pouco, entre as árvores, a lua
Surge trêmula, trêmula... Anoitece.
Publicado no livro Sinfonias (1883).
In: CORREIA, Raimundo. Poesias completas. Org. pref. e notas Múcio Leão. São Paulo: Ed. Nacional, 1948. v.1, p.120Banzo
Visões que n'alma o céu do exílio incuba,
Mortais visões! Fuzila o azul infando...
Coleia, basilisco de ouro, ondeando
O Níger... Bramem leões de fulva juba...
Uivam chacais... Ressoa a fera tuba
Dos cafres, pelas grotas retumbando,
E a estralada das árvores, que um bando
De paquidermes colossais derruba...
Como o guaraz nas rubras penas dorme,
Dorme em nimbos de sangue o sol oculto...
Fuma o saibro africano incandescente...
Vai co'a sombra crescendo o vulto enorme
Do baobá... E cresce n'alma o vulto
De uma tristeza, imensa, imensamente...
In: CORREIA, Raimundo. Poesias completas. Org. pref. e notas Múcio Leão. São Paulo: Ed. Nacional, 1948. v.1, p.18Chuva e Sol
Agrada à vista e à fantasia agrada
Ver-te, através do prisma de diamantes
Da chuva, assim ferida e atravessada
Do sol pelos venábulos radiantes...
Vais e molhas-te, embora os pés levantes:
– Par de pombos, que a ponta delicada
Dos bicos metem nágua e, doidejantes,
Bebem nos regos cheios da calçada...
Vais, e, apesar do guarda-chuva aberto,
Borrifando-te colmam-te as goteiras
De pérolas o manto mal coberto;
E estrelas mil cravejam-te, fagueiras,
Estrelas falsas, mas que assim de perto,
Rutilam tanto, como as verdadeiras...
Publicado no livro Versos e Versões (1887).
In: CORREIA, Raimundo. Poesias completas. Org. pref. e notas Múcio Leão. São Paulo: Ed. Nacional, 1948. v.1, p.109.
Beijos do Céu
Sonhei-te assim, ó minha amante, um dia:
— Vi-te no céu; e, anamoradamente,
De beijos, a falange resplendente
Dos serafins, teu corpo inteiro ungia...
Santos e anjos beijavam-te... Eu bem via
Beijavam todos o teu lábio ardente;
E, beijando-te, o próprio Onipotente,
O próprio Deus nos braços te cingia!
Nisto, o ciúme — fera que eu não domo —
Despertou-me do sonho, repentino
Vi-te a dormir tão plácida a meu lado...
E beijei-te também, beijei-te... e, ai! como
Achei doce o teu lábio purpurino.
Tantas vezes assim no céu beijado!
In: CORREIA, Raimundo. Poesias completas. Org. pref. e notas Múcio Leão. São Paulo: Ed. Nacional, 1948. v.1, p.6