Reinaldo Ferreira

Receita para fazer um herói


Tome-se um homem,
Feito de nada, como nós,
E em tamanho natural.
Embeba-se-lhe a carne,
Lentamente,
Duma certeza aguda, irracional,
Intensa como o ódio ou como a fome.
Depois, perto do fim,
Agite-se um pendão
E toque-se um clarim.

Serve-se morto.

O Futuro


Aos Domingos, iremos ao jardim.
Entediados, em grupos familiares,
Aos pares,
Dando-nos ares
De pessoas invulgares,
Aos Domingos iremos ao jardim.
Diremos nos encontros casuais
Com outros clãs iguais,
Banalidades rituais
Fundamentais.
Autómatos afins,
Misto de serafins
Sociais
E de standardizados mandarins,
Teremos preconceitos e pruridos,
Produtos recebidos na herança
De certos caracteres adquiridos.
Falaremos do tempo,
Do que foi, do que já houve...
E sendo já então
Por tradição
E formação
Antiburgueses
- Solidamente antiburgueses-,
Inquietos falaremos
Da tormenta que passa
E seus desvarios.

Seremos aos domingos, no jardim,
Reaccionários

A Fernando Pessoa (ele mesmo)


Cada verso é uma esfinge ter falado.
Mas quanto mais explícito ela o diz,
Mais tudo permanece inexplicado
E menos se apreende o que ela quis.

Erra um sussurro, tão etéreo e alado
Que nem mesmo silêncio o contradiz.
E o ouvi-lo, ou ávido ou irado
Na busca dum segredo sem raiz,

É como se em pensar - um descampado -
Passasse fugitiva e intensamente
O Tempo todo inteiro projectado

E a sombra ali marcasse, na corrente
Do nada para o nada, inda passado
E já futuro, a ficção do presente.

A que morreu às portas de Madrid


A que morreu às portas de Madrid,
Com uma praga na boca
E a espingarda na mão,
Teve a sorte que quis,
Teve o fim que escolheu.
Nunca, passiva e aterrada, ela rezou.
E antes de flor, foi, como tantas, pomo.
Ninguém a virgindade lhe roubou
Depois de um saque - antes a deu
A quem lha desejou,
Na lama dum reduto,
Sem náusea mas sem cio,
Sob a manta comum,
A pretexto do frio.
Não quis na retaguarda aligeirar,
Entre «champagne», aos generais senis,
As horas de lazer.
Não quis, activa e boa, tricotar
Agasalhos pueris,
No sossego dum lar.
Não sonhou minorar,
Num heroísmo branco,
De bicho de hospital,
A aflição dos aflitos.

Uma noite, às portas de Madrid,
Com uma praga na boca
E a espingarda na mão,
À hora tal, atacou e morreu.

Teve a sorte que quis.
Teve o fim que escolheu.

Nota: A.P.Braga tem uma canção (não publicada) com
este poema.

A emoção é como um pássaro


A emoção é como um pássaro:
Quando se prende já não canta.
Mas se a gente a liberta,
Qualquer janela aberta
Lhe serve para fugir.
O poeta é aquele que numa praça
S. Marcos de Veneza transcendente,
E de todas as praças, praça ainda,
Aguarda na manhã que se insinua
Ou na tarde que finda
O voo que há-de vir.
Ele estende a mão,
Abre-a espalmada
Ao céu,
Que à anunciação de tudo ou nada
A emoção virá ou não
- Sem emoção, toda a poesia é nada -

Fiel à Anunciação que está marcada
Na sua condição.

A estátua jacente


Mandei, mundano, talhar
Esta galante postura.
Ai de mim!, que a desventura
Dura o que a pedra durar!

Latinas frases austeras
Dizem de mim ilegíveis,
As mil virtudes possíveis
À pressão das sete esferas.

O nome, farto e faustoso
Com que de nada me enchi
Horizontal, o esqueci
Da altura do meu repouso.

Mas sempre sofro, emanando
Das cinzas por mim guardadas,
Memória de horas danadas
Que vão meu sono acordando.

Bispo fui; amando a guerra,
Cego ao aceno dos céus,
Troquei a graça de Deus
Pelas miragens da terra

Fui cobiçoso, mesquinho,
Falso, cruel, intrigante,
E numa orgia infamante
Pequei a carne e o vinho.

Morto me acharam um dia
No leito; tão decomposto
Que pelos restos do rosto
Ninguém já me conhecia.

Em vão, com óleos, essências
De aroma arábico e forte,
Se disputaram à morte
Minhas letais pestilências.

Húmido, em nardo, eu jazia;
Mas o fedor que exalava,
Mais que da carne, alastrava
Da alma que apodrecia.

Mãos, num vagar rancoroso,
Vingadas, porque adularam,
Em brocado entalharam
Meu corpo inchado e escabroso.

Por fim, fantoche mitrado,
Entre cem círios a arder
- Pudesse um deles também ser
E consumir-me queimado! -

Entrei na nave deserta
Que do pórtico parecia
Que a todos nos engolia,
Fauce esfaimada e aberta.

Oh! Com que náusea os ouvi
Salmodiar-me; e exausto
De tão falsíssimo fausto,
Com terror me apercebi

De que o cansaço devia
Ter-se extinguido também
Comigo, não ir além
Da vida que em mim havia.

Mas não! Meus cinco sentidos
Desenfreados agora
Os tinha mais do que outrora,
Buscando os vícios preferidos!

Incapaz de movimento,
Eu, cego, impotente e mudo,
Dentro de mim, via tudo
Num pavoroso tormento!

Só a solidão me deixaram
Na cava nave nocturna
E a presença taciturna
Dos que a meu soldo mataram,

Dos que a meu lado morreram
Sem confissão, emboscados,
Dos que ao meu oiro amarrados
Porque os perdi se perderam!

O tempo, enorme, passou.
Mais que um vitral se partiu,
Mais de que um arco ruiu
E eu vivo e morto ainda estou.

Quando o tempo ao fim desbaste
Minhas puídas feições,
Talvez as minhas acções
Também o tempo as desgaste.

A sombra silenciosa
Da cruz, que alonga ao sol posto
Sua brandura ao meu rosto,
Talvez parando piedosa

Sobre os meus olhos, talvez
Dorida do meu quebranto,
Amoleça em meigo pranto
Tanta maciça altivez.

Talvez os vermes, por dó,
Os alicerces minando,
Altos tectos derrubando,
Me restituam ao pó.

Talvez também - maldição! -
Em cada grão inda viva
A minha insónia, cativa
De um remorso sem perdão!

Não creias, pois, viajante
No meu sossego aparente;
Sê calmo, casto e constante,
Sê sóbrio, humano e paciente;

Sê tudo quanto eu não sendo,
Porque o não fui, Deus legou,
À pedra inerme jazendo
A sensação de quem sou.

A tua mão é que desperta Abril


A tua mão é que desperta Abril
E, só de lhe tocar, reveste a rosa
E o vento vem, à tua mão airosa,
Como o cordeiro vem ao seu redil

É a tua mão que nos ascende, às mil,
Estrela por estrela, a clara noite oleosa
E nela, a vasta vaga procelosa
Semelha avena mansa e pastoril.

Oh! mão que nos semeias maravilhas,
Afastas do naufrágio as gastas quilhas
E deténs o trovão que nos assombra!

Oh! mão de alado gesto poderoso!
Entre todos sou eu quem, mais ansioso,
Aguarda que me cubra a tua sombra!