Rubens Rodrigues Torres Filho

Existencialismo


No fim das contas, que me resta? O sono,
o despejar meus restos na privada,
o querer tudo, não poder mais nada,
não responderem mais se eu telefono.

Ir à cozinha, no meu abandono,
comer um pote dessa marmelada,
voltar ao quarto, pôr o meu quimono,
deitar na minha África sonhada.

Ler um pouco de Sartre, abrir a boca.
Riscar num bloco uma bacante feia.
Ligar o rádio: uma cantora rouca.

Sentir meus olhos grávidos de areia.
Sentir no fundo uma saudade (pouca).
Ir olhar que horas são. Duas e meia.


In: TORRES FILHO, Rubens Rodrigues. O vôo circunflexo: poesia. 2.ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. p.34

NOTA: Quatro sonetos: 1. Quinhentismo, 2. Seiscentismo, 3. Oitocentismo, 4. Existencialism

Circunflexo


O vôo circunflexo de uma ave,
ponto de exclamação e convergência
de um olhar mais que nítido: vazado.
(— E, transpassada por um vento externo e interno,
a praça, com janelas para a praça.)

Deixamos de esperar que alguma dança
perdoe nosso espaço alucinado.
O desenho dos gestos se extravia,
a dor se agrava, grava em nós seu mapa.

Pouco faltou para que nosso invento
tivesse sopro, fosse além do traço:
navegação, mais rápida que a barca,
ia tecendo sua própria água.

As linhas, uma a uma, caem mortas
diante desta manhã, trava, aguçada
pelas doces palavras
desarmadas.


In: TORRES FILHO, Rubens Rodrigues. O vôo circunflexo: poesia. 2.ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. p.1

Clorofila


Verde mar, verde rio e verde pranto
que choveria em verdes matas prisioneiras
aprisionadas neste longo e frio amante
que fui, para nós dois, na sexta-feira
da solidão.

As borboletas lúcidas na treva
que por artes de ausência vêm caindo
em chuvas-lantejoulas vão cobrindo
as lajes destes bosques, clorofila
irrespirável.

São páginas colhidas, escolhidas
que este vazio por dentro desescreve
e o tempo reinscreve do outro lado.
E nós, por dois ou três, unidos por engano,
partilhamos o frio, que só nos damos
sob condição, à espreita ou de tocaia.

Por trás do olhar dos lírios vai roendo
algum sutil inseto iluminado
que sabe dos desertos e a cavá-los
galopa nesse nada que o devora.


In: TORRES FILHO, Rubens Rodrigues. A letra descalça: poemas. São Paulo: Brasiliense, 1985

Desenvolturas


Nós nos queremos bem: ah que derrama,
que hemorragia de sentimentos!
Irmãos! que almas transparentes temos!
O chão nos foge sob os pés, tão leve.
Podemos nos olhar pelos avessos
que é tudo luz. O bem que nos queremos
nos santifica até aos intestinos.
Que vísceras de vidro! Que evidência!
Meu pênis se eletriza — é um travessão! Um hífen!
Um traço-de-união entre duas almas
tão juntas, tão aninhadinhas
uma na outra que dá gosto e enlevos.
Nos sabemos de cor, rosto e relevos.
Tudo nos dança: umas fosforescências
embevecidas lambem nossos beiços
e um simples esplendor nos satisfaz!


In: TORRES FILHO, Rubens Rodrigues. O vôo circunflexo: poesia. 2.ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. p.1

Figura


Esse sorriso justo, pontuado por vírgulas abstratas,
e no caminho, seguramente em cena, mira
o claro desejo: desmisturar-nos, por qual arte,
em meio a tanto. Mexer com esses relevos
subordinados ao fio da ausência. E o que se supõe
dispõe flores avulsas e laços de linguagem.


In: TORRES FILHO, Rubens Rodrigues. Figura. São Paulo: Ed. do artista, 1987