antoniocabral

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Sou Antonio Cabral Filho, que em sua presença emigra; do pinto que não quer milho, João Cabral que lhe diga.

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Alguns Poemas

Seleta Di Versos * Antonio Cabral Filho - RJ

***
S E L E T A



D

I



V E R S O S









Antonio Cabral Filho





Letras Taquarenses Edições

2014

*

NOTÍCIAS DE MIM


Nasci em 13 de agosto de 1953, no município de Frei Inocêncio - MG. Em 1964, após o golpe militar, fui para a escola, por decreto do generalíssimo Castelo Branco, aos onze anos de idade. Em 1968 concluí a quarta série, com média 7. Nessa época eu fazia teatro, na escola e na igreja, e, com a ajuda da única pessoa que eu considero Professora neste mundo, a Dona Adir, como eu ainda a chamo, montamos a peça O FILHO PRÓDIGO, com a intenção de realçar a auto-destruição em que se encontrava a juventude naquele momento.

Durante as férias escolares de junho de 1968, dei uma chegada ao Rio de Janeiro para fazer uns biscates e comprar roupa nova, mas ao chegar no Catumbi, meu primo Sadi levou-me para conhecer a cidade. Era 26 de junho, dia da PASSEATA DOS CEM MIL. Passeei na passeata.

Em junho de 1969, meu Tio paterno Sebastião Cabral, mestre de obras no Rio de Janeiro, foi buscar peão para suas obras e eu me alistei. Falei com ele da necessidade de eu sair da roça, escapar das garras do meu pai, deixar de ser mão-de-obra gratuita. Tinha quinze anos e era escravo do meu próprio pai.

Ele compreendeu e arrancou-me da casa paterna, não sem antes anunciar-me as agruras da cidade. Ao chegar em seu barraco, na Favela da Mineira, meu romantismo com a cidade grande foi pelo valão abaixo. Vi cair aos meus pés um menino fuzilado pela polícia, que segundo foi dito, era traficante. Durante muito tempo eu tive pesadelos por causa disso.

Morei na casa do meu querido tio até ir para o quartel. Matriculei-me na Escola Geny Gomes, no Rio Comprido e cursei o ginásio. Era um tempo turbulento, com muitos professores fazendo "inquéritos" com os alunos. Logo a seguir, entrei no Colégio Martin Luther King, fiz a sétima e a oitava séries e fui para o profissionalizante, no Curso Santa Rosa, Largo de São Francisco, em frente ao IFCS-UFRJ. Era 1974, fui promovido a cabo do exército, mas de olho no curso de sargento. Fiz o curso e passei, fiquei até 77 aguardando a promoção que não veio e pedi baixa; passei no vestibular e fui cursar direito na UFF. Abandonei por desilusão com a filosofia do direito após o quarto período; fui para comunicação social, mas a psicologia da notícia acabou comigo. Caí na vida e estou pegando touro à mão.


1 -


1 - ECCE HOMO - POESIA, Edições Curupira, 1997;
2 - DUELO DE SOMBRAS, POESIA, Edições Curupira, 1999;
3 - VER...SO CURTO&GROSSO - POEMAS PIADAS, Edições Letras Taquarenses, 2006;
4 - CINZA DOS OSSOS, POESIA, Edições Letras Taquarenses, 2008;
5 - MEUS HAICAIS PREFERIDOS, COLETÂNEA DE 20 AUTORES, Org Antonio Cabral Filho, Edições Letras Taquarenses, 2010
6 - TROVAS DE TORCEDOR, TEMA FUTEBOL, E-BOOK, 2010;
7 - TROVADOR DE FÉ, RELIGIÃO, E-BOOK, 2011;
8 - TROVAS DE AMIGO, HOMENAGENS, CRÍTICAS, IRONIAS, E-BOOK,2011;
9 - AUTOBIOGRAFIA EM TROVAS & VERSOS FAMILIARES, E-BOOK, 2012;
10 - CADERNO DE HAICAIS, E-BOOK, 2013.
11 - SELETA DI VERSOS 2014


2 - PARTICIPAÇÕES


1 - POETAS DA CIDADE DE NITERÓI, ANE -
Associação Niteroiense de Escritores, 1992;
2 - POETAS 10ENGAVETADOS, Coletânea
, Org. Antonio Cabral Filho, Edição dos Autores, 1995;
3 - ANTOLOGIA POÉTICA VOL2, UFF/EDUFF 1996;
4 - INTERVALO, Ano II Nº10,
Edição Francisco Filardi, 2006;
5 - ANTOLOGIA BRASIL LITERÁRIO 2007,
Org Ivone Vebber, 2007;
6 - QVADERNS DE POESÍA SETEMBRO 2007,
Org Padre MossenPere Grau i Andreu,
Edição Le Club de Difusion Cultural,
Barcelona-Espanha 2007;
7 - CD DE POESIA 2008,
Org Carmem Borges 2008;
8 - DVD DE POESIA 2008,
Org Carmem Borges 2008;
9 - ANTOLOGIA BRASIL LITERÁRIO 2009,
Org Ivone Vebber 2009;
10 - QVADERNS DE POESÍA SETEMBRO 2010,
Org Padre Mossen Pere Grau i Andreu,
Edição Le Club de Difusion Cultural,
Barcelona-Espanha 2010;
11 - FANTASIAS COLETÂNEA,
Org Rozelia Scheifler Rasia et all,
Edição Alpas21/Ed Alternativa 2011;
12 - ANTOLOGIA 13 POSTAL CLUBE,
oRG Araci Barreto, Edição Postal Clube, 2011;
13 - POETAS EN / CENA 6 - BELÔ POÉTICO,
Org Rogério Salgado e Virgilene Araújo, BELÔ POÉTICO 2012;
14 - VERSOS DE OUTONO ANTOLOGIA
Org Delmo Fonseca, Edição Confraria de Autores 2013;
15 - ANTOLOGIA 15 POSTAL CLUBE,
Org Araci Barreto, Edição Postal Clube 2013;
16 - ANTOLOGIA DE POETAS BRASILEIROS CONTEMPORÂNEOS
Org Elenilson Nascimento, Editora Pimenta Malagueta, 2013;
17 - DIÁRIO DO ESCRITOR - Livro Agenda, Litteris Editora, 2013.

18 - APANHADOR DE SONHOS ANTOLOGIA - Editor Marcio M. do N. Sena - Beco dos Poetas 2014.


*

DEDICATÓRIA


A TODOS,

TANTOS,

QUE SABEM

A SUA IMPORTÂNCIA

NA MINHA VIDA.


***

ÍNDICE ( Lista de Poemas )



1 - Florão da América

2 - Poeta de Periferia

3 - Brecht Sob o Céu de Berlim

4 - Ladeira Saint Romain

5 - Me Disserem

6 - Lições de Tempo

7 - Solilóquio

8 - Cogitação

9 - Instinto Primitivo

10 - Política Anti - Literária

11 - Do Pobre Arlequim

12 - Lira dos Quinze Anos

13 - Cinza Wim Wenders

14 - Canção do Preto Inácio

15 - Canto a Ilu-ayê

16 - Delírios de prometeu

17 - Canção dos Guetos

18 - Tempo Fértil

19 - Lotação Esgotada

20 - Faluja

21 - Canções do Filho

22 - Rimbaudices

23 - Dezoito Brumário de Artur Rimbaud

24 - Deslumbramentos

25 - Neoliberal Postudo

26 - Poema Para Moacy Cirne

27 - Viver Sem Receita

28 - Shakespearíaco

29 - deuses do Gueto

30 - Cantiga Para Cassiano Nunes

31 - Quintana

32 - Quintana

33 - Quintana

34 - Quintana

31 - Ode ao Verso Livre

...

Apresentação



Mário de Andrade é uma fonte de inspiração à qual eu gosto muito de recorrer. Ele diz num determinado trecho do Prefácio Interessantíssimo que apresentação, prefácio, notas introdutórias, enfim, essas coisas de dar satisfações a que veio, são inúteis para quem nos despreza e desnecessárias para quem nos ama, ou algo assim.

Meu objetivo aqui não vai nessas direções. Não dou satisfações a quem despreza as diferenças nem preciso fazer preleções a quem as quer bem. Digo isto porque sempre marchei sozinho, sempre sem medo de aonde vai dar e no quê.

Minhas experiências com a escrita vêm desde a adolescência, quando da realização das festas juninas de 1967 em que meu pai pegou meu "Livro de Versos", apenas um caderno do MEC doado nas campanhas de alfabetização daquele período, e, acendendo o isqueiro do Vovó fumar, transformou-o numa tocha para pôr fogo na fogueira, não me lembro se de São João ou São Pedro, aos berros de " poesia é coisa de marica! " Lembro-me que no dia seguinte eu fui revirar as cinzas acreditando encontrar algum fragmento de poema que me ajudasse a reescrever alguma coisa. Inútil! Desde então trago comigo a noção de " estar só " naquilo que faço. Isso poderia ser um ponto de fraqueza para quase todos, mas aprendi a fazer disso a minha força: Não sei contar com ninguém, na hora do " pega-pra-capar ". Por isso, esta seleta de poemas eu a faço sem buscar apoio de ombros amigos, seja na escolha, seja na ordem dos poemas. E tudo que desejo registrar é que constitui-se de poemas bem divulgados, bem aceitos na nossa imprensa literária, a imprensa alternativa, hoje fortalecida pela internet, com seu mundo fantástico de sites, páginas e blogs.

Espero que quem os leia veja um pouco do meu trabalho, aqui representado por versos livres, sem nenhum poema minimalista, nem poemas-piadas, nem haicais, Nem trovas, nenhum soneto, sequer um poetrix. Apenas versos livres na sua expressão mais prosaica, mais solta, distante das formas fixas, modalidade na qual eu creio me mexer bem. Afinal, ser incluído em livros pela UFF - Universidade Federal Fluminense, ser editado em sites como o Jornal de Poesia, criado e dirigido pelo distinto Soares Feitosa, ou no Momento Litero Cultural, hoje tornado site pelo ilustríssimo Selmo Vasconcellos ou ainda figurar na ESCRITABLOG, do caríssimo Wladir Nader, não creio ser algo pouco significativo. E, com o devido respeito a quem gosta de tapinha nos ombros, eu não bajulei ninguém, não troquei favores, até porque não possuo nada trocável. Já cheguei a quinto lugar em diversos concursos, mas não me ressinto em injustiças e dou-me por satisfeito com os resultados até aqui. Mas de agora em diante, tudo muda.



***


FLORÃO DA AMÉRICA



O menino era pivete

E se chamava Joãozinho

Vivia como engraxate

Ganhando a vida por aí

Sem deus e sem diabo pra atentar



Foi estuprado por um maníaco

E encontrado morto na Lapa

Dentro de um latão de lixo



Não foi homenageado

Com honrarias militares

Nem imortalizado

Num samba de carnaval



Morreu e está morto

Morto, bem morto mesmo

Morto até na memória



O menino que era pivete

E se chamava Joãozinho

Que vivia como engraxate

Ganhando a vida por aí

Sem voz sem vez

E sem lugar na HISTÓRIA

*


POETA DE PERIFERIA



Nunca tirei um sarro

Nos bancos do Central Park

Nem aos pés da Estátua da Liberdade

Sequer algum dia

Imitei Hugh Grant

Trocando boquete

Com alguma Divine

Nos arredores de Los Angeles

Jamais mijei no Rio Hudson

Do vão central da Ponte do Brooklin

E nunca achei graça nenhuma

Em comer pipoca com bacon

No trem fantasma da Disney World

Tampouco nunca peguei um breack-fest

Em alguma lanchonete da Wall Street



Mas ninguém se assuste

Com o meu desdém debochado

Pelas coisas suntuosas

Desse mundo consumista

É que eu me sinto muito bem

Junto aos pés-de-cana

Dos butiquins pés sujos

Desses guetos suburbanos

Onde levo minha vida

De poeta proletário.

*


BRECHT SOB O CÉU DE BERLIM


Olhem para mim, vejam bem!

Eu estou aflito.

Não concebo ficar quieto

Diante da situação.

Se o tempo estiver bom,

Eu saio à rua a passear.

Se não estiver eu saio também.

Não dá pra ficar neutro.

Olhem para o tempo.

Como estão as nuvens?

Claras ou turvas?

Ou não há nuvens?

Chove e faz frio

Ou o calor é intenso?

Não importa!

Conforme a temperatura

Eu respondo à altura.

Não quero saber

Se são nuvens de tnt

Ou se neve suave de amanhecer.

Meus pés caminham...


*


LADEIRA SAINT ROMAIN



A Ladeira Saint Romain

Tem muita história a contar,

Mas a Ladeira Saint Romain

Não quer censura em sua história.



A Ladeira Saint Romain

Precisa de alguém que diga

Sua história com o Pasquim,

Mas que seja enquanto viva.



Pois a Ladeira Saint Romain

Não quer deixar sua história

Pra depois que ela morrer.



A Ladeira Saint Romain

Viu muita gente subir,

Mas não viu tanta gente descer.


*


ME DISSERAM



Eu menino me disseram

Que eu era HOMEM

Com todas as letras maiúsculas

Que eu teria uma mulher

Com a qual me casaria

E seríamos felizes para sempre



Porém eu descobri o AMOR e a LIBERDADE

E percebi que o amor é solteiro

E a liberdade não se casa com ninguém



Em seguida me disseram

Que todos tinham religião

E me venderam um deus

Que eu seguiria para sempre



Porém eu percebi

Que havia muitos templos

Tantas tendas onde comprar-se um deus

Que eu desisti

E fui tachado de ateu

Depois me disseram

Que todos tinham ideologia

E me venderam um partido

No qual eu ingressaria

E S P O N TA N E A M E N T E

E a ele serviria enquanto eu quisesse



Tornei-me então violento ativista

Mas constatei que todos tinham que ser iguais

E que o ser a si próprio era impossível



Até que um dia me avisaram

Que eu estava fora do partido

E que eu não era comunista



Desde então venho notando

Que todas as coisas têm um preço

E eu não posso comprar nada

Do que me querem vender

E ainda assim

o SHOW BUSSINESS

não quer deixar-me em paz

por onde quer que eu passo.



Como é possível

Numa mesma praça

De um lado um religioso

Fantasiado de cristo

Nos oferecendo a paz celestial

E do outro

Um comício eleitoral

Nos oferecendo um Strip-tease

Em troca de voto?

Agora restou-me a pecha:

Disseram que eu sou

ANARQUISTA.


*


LIÇÕES DE TEMPO



Houve um tempo

Não muito remoto

Em que me preocupei

Com a velhice

E até me programei

Pra fazê-la agradável,

Como lutei fiz planos

Formei vasta biblioteca

Pra passar o resto

Dos meus dias

Cercado de livros,

Planejei viagens

Pra conhecer a Ásia

A Europa a África

E da América

Visitar pelo menos

Machu Pichu.

Eu queria ser um

devorador de distâncias

guloso qual um marujo

pirata dos mares revoltos,

mas eu não sabia que o tempo passa

e que alguns copos de vinho

deixam a gente assim serelepe.

*


SOLILÓQUIO DE INVERNO



TUDO ANDA TURVO

Cigarras silentes

Arbustos estáticos

Há muito não noto

Formigas nervosas no seu ir e vir

Nem os grilos silvam mais


TUDO ANDA TURVO

Sapos aposentando pilões

Não sei mais dos agouros da côa

E o Bentivi não mais

Dedura ninguém

Os cães nem ladram mais

Nas noites frias

Não mais há bêbados

Cambaleando as calçadas

Rumo ao incerto caminho de casa


TUDO ANDA TURVO

Não mais se ouvem amigos

Falando alto na esquina

Contando histórias de amores furtivos

E mijando a saideira

Tomada agora há pouco


TUDO ANDA TURVO

E não basta dizer

Que tudo anda turvo

A manhã vem irrompendo

E Netuno acaba de soltar os ventos

E Vênus balança os cachos

Rindo-se de mim

Com seu sorriso de ninfa.


*


COGITAÇÃO


(Ao Poeta e Amigo Pedro Giusti)



Pense

Pense

&

Escreve

Se não puder sussurrar

Pense

Pense

&

Sussurre

Se não puder falar

Pense

Pense

&

Fale

Se não puder gritar.


*


INSTINTO PRIMITIVO



Foi assim

Sem mais

Nem menos

Me aproximei dela

E senti um odor diferente

Odor de terra molhada

Algo natural mesmo

Lhe cumprimentei

E senti todo meu corpo crispar-se

Ela notou e disse

Vem cá

E fomos de mãos dadas

Olhos nos olhos

Assim

Sem mais

nem menos

*

POLÍTICA ANTI - LITERÁRIA


O poeta ingênuo sai no pau com o crítico literário

Pra ver qual deles é capaz de regenerar

O poeta oportunista



Enquanto isso o poeta revolucionário

Panfleta nas favelas

O seu sonho visionário



E o poeta maior

O poeta menor

E o dito marginal

Fazem bolotinhas

Com meleca do nariz...


*


DO POBRRE ARLEQUIM





Nasci no sopé das montanhas

Lá onde terminam os bosques

E as florestas se adensam.

Bem cedo aprendi a brincar

Com os habitantes desse mundo

Onde reinam Sacis e Iaras.



Ainda menino fui pras cidades

Sem seio de mãe nem ombro de pai

Órfão de noite e de dia.



Segui sempre o sem-fim dos caminhos

E a poeira das estradas

Tingiu de vermelho os meus sonhos.

E o ronco do motor dos caminhões

É que ninou a soneca do menino

À sombra dos arbustos solidários.



Meu prato requentado e rápido

Eu soube sempre o seu sabor de sal

Temperado de relento e sol.



Na cidade sou um peixe fora d'água

E vez por outra ponho-me frente aos bares

Perscrutando por que essa gente bebe tanto.



O meu amor não sabe o pranto

Tão fartas comigo foram as mulheres francas

Em darem-se inteiras e detalhes tantos.



Não prometo ser algum dia um gentleman

Mas eu não mijo calçada a fora

Após uns chopes com steinhägen.


*


LIRA DOS QUIZE ANOS



Oh que alívio que eu tenho

Daqueles colegas de infância

Com seus mundos cor-de-rosa,

Heróis de história em quadrinho,

Coca-cola, chiclete, carmanguia,

Lencinhos perfumados, documentos,

Sem sombra de movimentos

Que os anos não trazem mais.



Como eram frios os versos

Profundamente românticos!

Mas contra os versos

Profundamente românticos

A alma dos versos meus

É francamente livre

E cospe na cara do eu-lírico

Que caça borboletas azuis.



Oh que alegrias que eu trago

Das minhas gazetas da infância,

Daquelas tardes jongueiras

À sombra dos oitiseiros

Entre o Largo da Carioca

E o tabuleiro da Baiana

Com tudo quanto é quitute,

Cuscuz, cocada, quindins

E os chamegos da mulata.



Oh que saudades que eu tenho

Da minha Avenida Central,

Avenida dos meus sonhos

Colhidos na Cinelândia

E comidos nos Arcos da Lapa

Por alguma linda Brigite

Com beijo gosto de menta

E seios de Marilyn Monroe.


Pobre do espírito pudico

Que nunca esbarrou com Cupido!

Jamais se esbaldou

Nas tabernas da Praça Mauá

Degustando cuba-libre

Com as nossas Bardots,

Nem trocou beijos calientes

Entre senha e contrassenha

Com alguma companheira

Aos cicios " pela revolução!"

Nas esquinas da Rio Branco.



Livre filho suburbano

Desfilava desafeto

Por meu boulevard sem Paris

Da minha Avenida Central,

Que só virou Rio Branco

Para agradar ditos-cujos,

E ria com meus olhos leigos

Da anarquia arquitetônica

Daquele casario sem eiras,

Que o Pereira "passo" extinguiu

Com um só "bota-baixo".


Naqueles tempos ruidosos

De ardente adolescência,

Papai montava a cavalo

E saía pra campear,

Mamãe brandia o chicote

E o leite fervia

No fogão a lenha,

Eu era pingente de trem

E ofice-boy da Light

E Che Guevara era bandeira

Nas barricadas de Paris.



Ai que saudades que eu tenho

Da Avenida Rio Branco

Como um palco a céu aberto

P'rum côro de cem mil vozes

Cantando Geraldo Vandré:

"Vem, vamos embora,

Que esperar não é saber,

Quem sabe faz a hora,

Não espera acontecer."


Mas "saudades" que eu sinto,

"Saudades" que me doem fundo mesmo

São da Avenida Rio Branco

Na Passeata dos Cem Mil

No auge dos meus quinze anos,

Daquela gente bronzeada

Mostrando tanto valor

Só pra mudar o Brasil,



Dos " bailes" que eu dei nos "ome"

Na Biblioteca Nacional

Com o saco de bola-de-gude,

Do Wladimir trepado no poste

Gritando "Abaixo a Ditadura!"

Alheio ao gás lacrimogênio,

Das balas com endereço certo

E o sangue correndo solto.....

................................................

São "saudades" que a palavra

Lhes recusa a assinatura,

Coisas muito duras para esquecer

Como diz o Rei Roberto,

Mas me fazem muito bem

Que os anos não tragam mais.



Por isso eu sigo cantando

"Caminhando" com Vandré:

" Vem, vamos embora,

Que esperar não é saber,

Quem sabe faz a hora,

Não espera acontecer."


*


CINZA WIM WENDERS


O céu turvo de Berlim

Lembra lona de circo velho,

Onde nossos avós nos levavam

Para vermos aquele palhaço

De há muito nosso conhecido.



Seus prédios cinzas,

De um cinza há muito conhecido,

Soltam o reboco feito animais

Que de tempos em tempos

Mudam de pele.



Suas árvores, em eterno outono,

Sem folhas pelo chão...

Suas cores, não sei como, jazem

Sob esse cinza perene

À espera da plena primavera...


*


CANÇÃO DO PRETO INÁCIO



Nasci nos caminhos de dentro,

Que ligam Minas Gerais à Bahia,

Ali pelas imediações do Suassuí,

Lugar de muita casa grande

E senzala mais ainda.



De início éramos todos lavradores,

Gente de lida que os senhores arrebanham

Com ajuda dos bate-paus,

Ora pegos em quilombos

Ora arrematados em leilões

Feitos pelos negreiros à beira dos cais.



Mas de tempos em tempos

Alguém saía de trouxa nas costas

Pendurada no pau de dois bicos,

Como fez o Preto Inácio

Que nunca mais deu sinal.


Quando fugia, dizia-se

Que fez poeira;

Quando saía por conta própria

Dizia-se que foi pra vida;

E, quando era posto pra fora,

Buchichava-se à boca miúda:

Foi vender puáia,

Que era como tratavam

esses pretos velhos

vendedores de raízes

nas feiras da cidade.



Entre uma e outra leva

Dessa gente que partia

Fui aprendendo com a vida

Lição por lição de partida

E assim que peguei tope

Aprontei meu pau de dois bicos

E fiz poeira,

Fui pra vida

Vender puaia.

*


CANTO A ILU-AYÊ



Negro é raiz da liberdade

Mais forte que qualquer outra

E faz nosso povo se unir

Hoje muito mais que outrora.

Porém, os chacais que o rondam

Ainda encontram lacaios

Contra o nosso porvir,

Pois quem nasceu para Judas

Não se cansa de trair.



Ilu-ayê tem o sorriso negro

Pra fortalecer meus irmãos

E regar a flor da resistência

Desde a grimpa dos morros

Até à vereda mais úmida

Em prontidão na tocaia

Para emboscar bate-estradas

E avisar aos capatazes

Que quem brinca com corda

acaba dependurado.


Ilu-ayê tem o abraço negro

Pra fortificar os quilombos

E multidões de Zumbis

Com suas bandeiras erguidas

Pra celebrar nosso Rei,

Que deu seu sangue por nós

E merece glória eterna.



Ao cismar sozinho relembro

Que todo instante da vida

É sempre vinte de novembro

Com a dignidade iluminada

E o espírito pleno de axé.



Pois nossa pele tem mais sol,

Nosso céu tem mais luar,

Nosso povo tem mais força

Quanto mais doar amor.



Não permita Deus que eu morra

Sem que ainda faça um poema

Digno da beleza negra,

Com maior engenho e arte,

Que exalte Rainha Dandara,

Zumbi e Solano Trindade

Com uma imensa quizomba

Para alegrar nossa raça

E cantar pra Ilu-ayê!

*


DELÍRIOS DE PROMETEU


Acossado por despautérios,

As Tróias do presente

E as Cartagos do futuro

Obrigam-me a transpor muros

Da epopéia de quimeras

E prever que qualquer dia

Serei mito de ficção.



Algo ímpar na literatura universal,

Maior que Sherazad,

Maior que Dom Quixote,

Mais forte que os Três Mosqueteiros,

Mais valente que Robin Hood,

Mais sortudo que Robinson Cruzoé

Com Segunda Feira e tudo.



Desses que viram objeto de estudo,

Mais que Joyce e Ezra Pound

E dão pesadelo em curiosos,

São temas de teses acadêmicas

E motivo de congressos mundiais

Com reunião de exegetas renomados,

Cada qual com seu aporte

Sobre o pobrezinho aqui.


E o maior frisson

É o momento culminante

Em que todos vão à práxis

Acomodados em mesa redonda

Para provarem seus enfoques,

Quando enfim sou dissecado

Letrinha por letrinha

Até à exaustão,



Inclusive com preleção

De Leonardo da Vinci

E sua aula de anatomia.



Depois, todos partem felizes,

Com ares de dever cumprido,

Enquanto eu pairo sobre tudo

Alheio ao suor derramado,

À adrenalina gasta

E ao fosfato queimado,

Todo senhor de mim,

Dono do meu ser ficcional

Infinitamente inexaurível,

Como bem apraz à obra prima!


*


CANÇÃO DOS GUETOS





YO LOS HABLO HERMANOS

ACÁ TAMBIEN HAY APARTHEYD.



Guetos de Roma

Hanói, Formosa

Pequi, ou de la Habana Vieja

Y sus "desintegrados"



YO LOS HABLO HERMANOS

ACÁ TAMBIEN HAY APARTHEYD.



Guetos londrinos

Bem à margem do Buckingham

Guetos germânicos

De Bonn ou Berlim

Divididos em "Òssis e Véssis"

Cada um velando

em seu umbigo

o ovo da serpente

MADE IN GERMANY



YO LOS HABLO HERMANOS

ACÁ TAMBIEN HAY APARTHEYD.


Guetos da Bolívia

E seus índios "cocaleros"

Da tribo Quéchua,

Guetos do Peru

E seus guerrilheiros

Sem sendeiros luminosos

Para TUPAC AMARU,

Guetos da Venezuela

E seus caracazos bolivarianos



YO LOS HABLO HERMANOS

ACÁ TAMBIEN HAY APARTHEYD



Guetos dos guetos amarelos

Brasilverdesifilíticos

Gonorrêicos que não lhes quero

Assim do Oiapoque ao Chuí

Das palafitas ribeirinhas de Manaus

Cheias de prostitutazinhas meninas

Vendida por seus próprios pais

A caftens made in europe

Às margens das trans...amaz

Ônicas de meninos e meninas ao relento

Nas praças da república

De suas megacapitais



YO LOS HABLO HERMANOS

ACÁ TAMBIEN HAY APARTHEYD


Guetos de São Paulo

Dos casarios miseráveis

De tábua e zinco

Das zonas norte

Desnorteadas pro

Sul leste oeste

Que apesar dos pontos cardeais

Que os atritam

Nenhum cardeal

Nos deixam em paz

Nos seus sermões dominicais



YO LOS HABLO HERMANOS

ACÁ TAMBIEN HAY APARTHEYD



Guetos do Rio de Janeiro

De tontas maravilhas

De janeiro a janeiro

E cariocas brejeiras

De cartão postal

De Chapéu Mangueira

E Pavão Pavãozinho

Vidigais e Vigários Gerais

Onde a palavra FAVELA

Fala a língua do "bigode grosso"

Pela graça da mordaça

De tantos COMANDOS



Há que buscar uma linha

Mesmo que seja vermelha

Mesmo que seja amarela

Ainda que seja anêmica

Para juntar tantas

Rocinhas Morros das Viúvas

Ladeiras dos Adeuses

Baixadas e Jardins Catarinas

Contra tantos opressores.





Pero hermanos

Hablar no me basta

Como no me basta

Llorar los hermanos caídos

Pois para poner fin

A tanto apartheyd







HAY QUE ENSUCIARSE LAS MANOS!


*


TEMPO FÉRTIL


Não sei se Homero foi à guerra,

Mas exaltou seus heróis

Que foram fazer fortuna.



Camões eu sei que foi

E cantou em verso e pólvora

Os crimes que cometeu.



Tem bardos compondo hinos

Por honra de seus irmãos

Mortos em alheio chão.



Não sei o que sentiriam

Se tivessem os seus lares

Invadidos por estranhos,



Mas eu digo a todos eles:

Não hastearei minha bandeira

Sobre os restos de ninguém,

Como apraz aos cães de guerra;



Não entoarei cantos de gesta

Pelas desgraças alheias,

Tão caras aos pais da usura;

Não gastarei tinta e papel

Só para matar o tempo

Ou agradar ociosos

Com coisas tão caras.



Nunca joguei porrinha

Valendo escalpe de índio

Nem minas de Vila Rica.



LOTAÇÃO ESGOTADA



Brasil cheio

De raças

De classes

De castas



Brasil rico

De prosas

De histórias

De causos



Brasil farto

De seitas

De facções

De máfias



Até o dia em que

Veremos ruir

Isso tudo

E o caos

Entorne a taça

E eu possa rir

O riso largado

Da sangria desatada

Com o potro solto no pasto

E o nosso povo altivo

Com a bandeira na mão.



FALUJA



Vou-me embora pra Faluja,

Aqui eu não sou feliz,

E vou sem Manoel Bandeira,

Pois na hora da partida

Virou porquinho da Índia.



Vou-me embora pra Faluja

E já disse porque vou.

Faluja é uma terra livre

Onde o povo não tem rei.



Vou-me embora pra Faluja,

Aqui eu não volto mais.

Faluja é terra de luz

Onde o povo faz a lei.



Vou-me embora pra Faluja,

Viver lá é uma aventura

De tal modo comovente

Que churrasco de yankee

É servido ainda quente.


Vou-me embora pra Faluja,

Vou juntar-me àquela gente

E fazer que um mundo surja

Sem choro e ranger de dente.


Vou-me embora pra Faluja,

E encerrar a ladainha

Senão eu não chego lá

Nem saio desta terrinha...



Vou-me embora pra Faluja,

Lá sou inimigo do rei

E minha maior diversão

É combater a opressão.


*


CANÇÕES DO FILHO

Parte I

Na minha genealogia

Tem um Pataxó destribalizado

E uma negra Haussa evadida,

Restolhos das "Entradas

E Bandeiras," por parte de mãe.



Ambos foram caçados

Por um bandeirante

E seus bate-paus,

Por parte de pai.



Nesta terra de Caminha

Que em se plantando tudo dá,

A escravidão sexual

Vira miscigenação

E ganha status em canção

De muito filho bastardo.



Muitos se ufanam

De serem mestiços

E até receitam isso

Com certidões de mulatos.



Mas eu não tenho dúvida,

Não cometo suicídio de raça

Nem viro escravo de sangue.



Parte II



Chamam-te AMÉRICA

E após tomarem teu corpo

E devassá-lo milhões de loucos,

Esquartejaram-no com mil cavalos

E aonde acharam manchas do teu sangue

Batizaram com nomes eurobestiais,



Mas pra conferirem ares santos

Providenciaram as bênçãos

De certa santa madre igreja

E em cada parte violada

Cravaram aí uma espada

Simbolizando a nova fé,

À qual chamaram cruz de cristo.



Santa Mãe Terra,

Tão divina, tão ultrajada,

Teu nome são teus filhos

E tu vives em todos nós

Desde a mais antiga Era

Ao mais distante Futuro.

Como eu vivo em meus avós

E o rio na montanha,

Somos todos um só,

Santa Mãe Terra.


*


Menos teus inimigos,

Que perecerão ao relento

Sem chão sob seus pés

Nem céu sobre seus rostos,

Como os ratos, sem berço

De Mãe nem Pátria.


Parte III


Este é um país de poetas

Em sua maioria crioulos,

Que derramam no papel

Transatlânticas nostalgias

Pelas pátrias de seus pais.



Desde Bento Teixeira e Manoel Botelho

Que lançam seus tentáculos

Aos confins de suas itálias,

Ricas em leonardos dantes;

Às suas lisboas fartas

De lusidíacas iguarias das índias

E bacalhau norueguês;

Às suas Londres opacas

Túmidas de piratas da rainha;

D'espanhas e franças e holandas

De germânicas reminiscências.



Felizmente não vivo aqui

Com o umbigo além-mar,

Não sofro a mácula

Do pecado original,

Não trago em meus ombros

Pesadas montanhas

De negros e índios

Dizimados por meus pais,

Para que eu vivesse em paz.



Não canto, não toco nem faço coro

Com o coral da escravidão,

Pois eu estou em minha terra,

Terra natal eterna

Dos meus antepassados longínquos,

Dela broto e a ela volto

E me deito sem colchão

E me desfaço em seu corpo de mãe.



Parte IV



Minha terra não é "minha"

Nem é de quem diz ser dono,

Mas tem impostor assim, oh,

Que a chamam de minha terra.

Muitos dizem minha terra,

Mas com os pés em chão alheio;

Só que esses "terratenientes"

Passam o dia no formol

Pra vampirá-la de noite

Com seus versinhos biáfricos

Por uma caneca de vinho.



Mas o fazem ser saber

Que só vinho não dá verve

Pra suas poéticas esquálidas

Tirá-los de cena à francesa,

Como se fossem nababos.

E tornam careta o Brasil,

Chinfrinizam os seus milagres

E deixam os marajás tupiniquins

Morrerem comendo acarajé

Na aba do sabiá.

*


RIMBAUDICES





Não confie em ninguém

Que xingue deus e o diabo,

E, como um litle bad boy,

Queira estuprar os anjos,

Mesmo que perca a perna esquerda

E a direita perca também

E ainda morra em Marselha,

Bem à porta do oriente

Carcomido pelo câncer.





Não acredite em ninguém

Com mais de trinta dinheiros,

Com mais de trinta invernos,

Que acredite em demônios,

Que fuja para a Abissínia

E contrabandeie armas

E ainda trafique escravos

E em sua hora final

Chame por seu Djami.*¹

Não confie em ninguém

Que levou tiro de Verlaine

E o colocou atrás das grades

E ainda fugiu para Roche

E, após uma Une Saisson em Enfern,

Mandou a Paul Demany

A Lettre Du Voyant,

Escreveu Iluminations

Sem dúvida bem além

Dos Paradises artificiales

De Monsieur Baudelaire,

Regado a muito haschisch.



Não confie em ninguém

Que nasceu gênio precoce,

Seja filho de gendarme,

Freqüente o CABARET VERT

E zombe de pátria e família

E vague noite a dentro no váquo

Como o Spleen de Paris.

Não confie em ninguém

Que sofra de rimbaudite

E viva pagando mico

Em algum coufeé maudit.



- *1 : Djami é o nome do mordomo de Rimbaud.

*


DEZOITO BRUMÁRIO DE ARHUR RIMBAUD



Tenho apenas vinte anos

A mais que Artur Rimbaud

E nem um segundo no inferno.



Nunca provei a taça da amargura

Nem quebrei a cara na Abissínia

Ou cheguei em casa perneta.



Jamais reneguei meus pais

Nem minha querida Jampruca

Por suas vidas pacatas.



E o fato de mochilar por aí

Não tornou-me um andarilho

Nem me fará urbanóide.



Sair da casa paterna, pra mim,

É o mesmo que ir ao trabalho

Ou à horta colher alfaces.



Não quero fazer do mundo

Um monte das minhas cinzas,

Porque me odeio e não tenho causa.

Não sofro de " cazuzismo ",

Acusando a burguesia

Por falta de ideologia.

*

DESLUMBRAMENTO



Meu primeiro amor

Foi como beijo roubado:

Sem liberdade de escolha.

Meu primeiro amor

Começou com a chupeta

Quando Ritinha ameaçou-me

"Só te namolo se laigá pepeta!"

Meu primeiro amor

Trocou bala boca-a boca

Na Igreja de Frei Inocêncio

Bem no meio da missa

E o Padre Daniel

Mandou-me rezar três Pai-Nossos

E eu rezei até mais

Para ficar bem perdoado

O pecadinho tão doce.

Meu primeiro amor

Bateu muita gazeta

Na pracinha da igreja

Só pra comer cocada

E dar beijinhos na boca

Das filhinhas-de-papai...

Meu primeiro amor

Passou nas provas

De educação sexual

Com notas de louvor,

Mas se o Grupo Escolar falasse...

Meu primeiro amor

Chupou muito ingá

Na galhada dos ingaseiros

Sobre as margens do Suassuí

Com a Dasdô do Mané Cachorro.



Meu primeiro amor

Tinha gosto de pé-de-moleque

Devorado com a gula

Do menino assustado

Com o presente da namorada

Que levantou a saia de chita

E lhe disse " mete aqui!"



Meu primeiro amor

Ficou de coração na mão

Com o bicho cabeludo

Da Maria Serafina

Nuinha na minha cama

Pra comer minha inocência,

Apesar dos avisos da mamãe

De que ela era rapariga.


*


Meu primeiro amor

Era como filme de Speelberg:

O tempo todo de suspense

E no fim sobra surpresa.

Meu primeiro amor

Nunca encontrou seu fim

Porque a poeira vermelha

Das estradas mineiras

Nos cobriu na encruzilhada

Entre o passado e o futuro

E o destino nos levou

Para distintos presentes.

*


NEOLIBERAL POSTUDO



Após a abertura

Lenta e gradual

Do General Geisel

Nos idos de 74,

Aceitei a receita

Do General Figueiredo

E empanturrei-me de democracia

Com eleição após eleição

E overdose de votos hoje

Pra curar o porre de ontem,

Nem sempre de votos.



Desde então aposentei

Meus apetrechos de guerrilha

Contra a ditadura militar,

Entre eles meu quixute

Mais veloz que bala de INA

E os arapongas do SNI

Com seus óculos Ray Ban

E cabelos James Dean,

Meus comprimidos de Redoxon

Contra gás lacrimogênio,

Minha lista de jornais

E ONGs de DH,


Minha coleção de calças jeans,

Meu Livro Vermelho de Mao Tsetung

E o trezoitão solidário

Que nunca "moscou" na hora

Quando fez-se necessário

Falar o idioma inimigo,

Além da inexorável certeza

De poder mudar o mundo

Nem que fosse a bala,



Mas a três décadas disso tudo

Não sou mais assim não,

Já não sei quem são meus inimigos,

Já não vislumbro as classes

Em que se antagonizam as pessoas

No seio da sociedade,



Não identifico mais ninguém

Como direita ou esquerda

E qualquer discurso ideologizado

Soa-me como algo anacrônico...



Enfim, tornei-me um reles

Neoliberal pós-tudo,

Sem os mínimos valores humanos

De respeito aos oprimidos

E à luta contra a opressão,

De solidariedade militante

Às minorias sociais

E aos despossuídos em geral.

Hoje, se o Tio Sam me pedisse,

Eu venderia minha própria mãe

E entregaria a alma ao diabo

Sem nenhum motivo aparente,

Porque tornei-me um neoliberal pós-tudo.


*


POEMA PARA MOACY CIRNE



Faz tanto tempo

Que não encontro alguém

Que há muito

Eu não encontrava

Alguém que me deixe assim

Alvissareiro

Como as flores e o sol

Às nove da manhã

Com o peito cheio de alegria

Pronto a dar vida às novas emoções,

Como aconteceu com o Cirne

E sua fada amante

Certo dia em Ceridó,

Que se sentiram crianças no parque

Com as façanhas que viveram

Tamanha a felicidade da dupla

Algo assim tão radiante

Que faz mister compartilhar

Fazer com que irradie

Em todo ambiente

Onde haja corações

Que buscam alguém

Digno de ser encontrado

Pelo puro prazer um do outro,

Como o vinho e os lábios

Da mulher amada.


*


VIVER SEM RECEITA


E assim foram-se vinte anos,

Vinte anos de namoro,

Após longas operações secretas

Nos hotéis da Frei Caneca

E seus corredores sinistros,

De arrepiar Hichtcock,

Com tantas fugas fantásticas

Pela Avenida Mem de Sá,

De congelar Mon Sieur Poirot

Depois de longas estadas

Nos cortiços da Gomes Freire

Durante tantos carnavais

Regados a frango assado

E muito vinho de buteco,

Muita lasanha com Black Prince

Nos bares da Cinelândia,

Filmes pornôs no Cine Íris

Só pra criar o clima,


*


Depois de muitos natais

Curtidos a dois nos quartinhos de favela

Regados a risoto de frango e Malzebeer,

Depois de muita briga besta,

Muita salada completa,

Muita "volta" recíproca,

Muita paz de beijo e abraço

Nos bancos da Cruz Vermelha,

Depois de Ana e de Edson,

Passaram-se vinte anos

Além dos cinco pregressos,

Almejo ainda mais vinte

Mas isto não é receita

Para mal sem cura...

*

SHAKESPEARÍACO



Ao tocar a sirene da fábrica

João não viu Maria sair

E bater o cartão de ponto

Às dezessete e trinta.



Às dezoito horas

João não viu Maria sair

E bater o cartão de ponto

Às dezoito e trinta

João soube pelo vigia

Que Maria fazia serão.



Às dezenove horas

João viu Maria sair

E bater o cartão de ponto

E despedir-se do amante

Com um longo beijo na boca.

João perdeu a linha,

Bebeu a noite inteira,

Chegou em casa de manhã

E matou Maria

Com um tiro na cabeça,

Depois saiu dançando rua afora

Tocando Carinhoso

Em sua flauta de bambu

E nunca mais foi visto.


*


DEUSES DO GUETO


Na topografia do caos

Veias são avenidas

E ninguém viu

Cruzar esta via

Um calango de pedreira

Mais veloz que um tisio

Ou um guri de patins

Nas vielas da favela,

Que ostenta o status

De "aviãozinho da boca"

Mais querido no pedaço

E finda abatido em pleno vôo

Nos becos do mundaréu...

O "patrão" paga o enterro,

O jornal gera emprego,

A família sabe o troco.


*


CANTIGA PARA CASSIANO NUNES



Recebi poemas durante anos

Do Mestre Cassiano Nunes

E saía com eles pra rua,

Levava para os eventos

E lia para os amigos,

Nas rodas e recitais

E quando soube da sua morte

Fiquei desconsolado, e agora (?),

Pensei, mas certo de não ter resposta,

Segui de boca seca.

Senti por não fazer acervo

De tantos poemas que recebi,

Mas me desfiz deles após

Lê-los para o meu público

E publicá-los em meus fanzines.

E a falta que sinto agora

Seja dos poemas ou do poeta

É a satisfação que vai comigo

Pelos destinos que lhes dei

Enquanto eles se foram

Para outras vidas e outras formas.

Mas quando alguém perguntava

Após a leitura de um poema

Quem é Cassiano Nunes,

Eu respondia todo enrolado:

É um paulista de São Vicente,

foi a Brasília fazer carreira

E nunca mais saiu de lá.


*


QUATO POEMAS A MÁRIO QUINTANA


1 - PARAISO QUINTANA


Dizem os abduzidos

Que ao chegar no Paraíso,

Tão bestunta quanto sempre,

Mário Quintana estacou,

Pregou na nuvenzinha

Que lhe servia de tapete

E ficou abestalhado

Com tanta beleza,

Tanta alegria, tanta paz,

Que até esqueceu de sair do lugar,

Sem dar um Passo sequer

E que um anjo louro,

Louro louro muito louro,

Aterrissou a seu lado

Pegando-o pela mão,

E saíram voando, voando,

De início a meia altura

Para logo em seguida,

Seguros de vôos mais altos,

Estenderem as asas

E ganharem outros ventos...


*


Coisas de abduzidos...

E dizem que Mário Quintana

Pensou em perguntar ao anjo

Que parque era aquele,

Lá embaixo, bem ao centro

De todo aquele Paraíso,

Mas como fosse um anjo

Leitor de pensamentos,

Foi logo explicando

Que era o Parque Mário Quintana,

Onde crianças e poetas

Se exercitam nos versos

Bem aos olhos das musas,

Que as suas lhe aguardavam ansiosas

Para ouvirem os versos seus.


*


E ao notar insegurança

Nos olhos tímidos do poeta

Pensando em Bruna Lombardi,

O anjo se adiantou dizendo

Que ela enviara todas suas semelhantes

Enquanto se desvencilhava

De seus encantos terrenos.

Segundo os abduzidos,

Quintana vive cercado

De musas e discípulos,

Exercitando seus encantos

Lá nos palcos do Paraíso,

Bem alheios à realidade.

Mas

Quem

Diz

São os

Abduzidos!

*


2 - QUINTAN'ESSÊNCIAS


Não consigo imaginar

Quintana chorando,

Cortando soluços sentidos

A não ser lágrimas

De extrema alegria

Para lavarem as faces

Queimadas pelo arco-íris,

Pois a palavra Quintana

Sugere criança brincando,

Alheia a tudo,

Imune a qualquer risco

Longe desta vida,



De direitos e deveres,

De ordens e obediências,

Reduzidas a números e papéis,

Aliás, como Quintana sempre quis.


*


3 - GRAVATA DE QUINTANA


Quintana empaca meu verso,

Mas eu puxo-lhe a gravata

E ele ri seu risinho besta

Cheio de desdém

Pelas coisas deste mundo,

E sem largar a desgraça do cigarro.



Intimo-o a não rir de mim,

Mas sem dar-me nenhuma atenção

Mantem-se concentrado em seu vinho

Sem descuidar com o olhar

Atento para surpresas

Que eu possa aprontar-lhe,

Até que desata a rir mais ainda

E desfaz-se o nosso entrevero,

Como se defraudasse

A bandeira colorida

Dos seus sonhos infantis.


*


Mas novamente puxo-lhe a gravata

E não mais encontro Quintana,

Só o vaquo da mesa vazia,

O salão da adega em silencia

E o jornal à minha frente

Com a notícia repentina...



Quintana decola

Do aeroporto moinho de ventos

Rumo ao seu mundo de estrelas,

Onde pretende esquecer de tudo

E passar o resto da eternidade

Puxando perna de grilo

E beijando brunas lombardes.





*

4 - QUINTANA







Mário Quintana

Partiu

De Porto Alegre

Para Porto Feliz

E foi-se

Sem dizer adeus

Rumo ao Reino de Deus

Esquecido de nós

De vez

Sem mandar notícias

Jamais

Ou seria um deus-nos-acuda

Com tantas Babis, Babys

E Brunas Lombardes

Em êxtase.



*

ODE AO VERSO LIVRE







No princípio a poesia era uma canção regada a vinho

Ao som de harpas tocadas com carinhos e beijos de mulher amada

À sombra de uma palmeira frondosa

Onde o poeta-filósofo se deleitava com a vida sem fronteiras

E ela brincava solta pelos bosques entre duendes

Indiferente ao tempo acariciando a sua nudez

Coberta de inocência,



Depois, veio a escrita e de palavra em palavra

Foi vergando-a sob o rigor do verso

Moldando-a à disciplina da métrica

E aprisionando-a à liberdade

Que lhe permite esta margem de papel,



E agora ela atravessa as grades das gramáticas

Sobrevoa o muro das linguagens

E vem sondar-me

No ondular dos cabelos desta mulher que passa...

*

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