Ana_Pereira87

A Casa


Dedicado à poetisa Célia Meira

Anda, vamos construir uma casa!

O teu corpo de algodão

é o alicerce.

Um lugar (in)comum.

Anda, vamos construir uma casa

neste chão em terra

lavrada pelos pés.

Anda, vamos construir uma casa

com ventos nos telhados

e janelas de chuva.

Anda, vamos construir uma casa

com portas de abraços.

Não há fechaduras.

Tudo se abre sem chave.

Anda, vamos construir uma casa!

Entre a cabeça e a boca

mastigo o cimento.

Quero paredes

enchidas de vozes,

ecos teus e meus.


Anda, vamos construir uma casa

sem métrica nem medida.

Que seja infinita

mas contida

nas suas raízes mais profundas.

Anda, vamos construir uma casa!

Tudo preto no branco.

Tudo branco no preto.

Na neutralidade seremos nós:

únicos.

Anda, vamos construir uma casa

decorada com os silêncios vazios

que se abrem em colcheias.

Anda, vamos construir uma casa!

Vamos aquecer-nos

no fogo dos olhos.

Anda, vamos construir uma casa!

Tenho palavras presas no cabelo.

Precisamos de algo novo

para habitar.

Impressão digital


Abro os caminhos

ladrilhados pelos passos

que não dei.

Mantenho a verticalidade

mas permaneço na perdição.

Para onde vou, não sei.

Ultrapasso os muros

que me cercam.

Num passo em falso,

sei da robustez do chão.

Fico a seus pés.

Da terra posso ver as estrelas

e as pedras choram por mim.

Suportam o peso

e o que sou.

Fico à distância do estender de mão.

Amparo-me

na impunidade

que se mantem firme.

Não subo degraus.

Elevo-me

para ficar vertical.

Foge-me a língua

para os olhos.

Vejo a serenidade

quieta da existência.

Deixo o sorriso sofrido

enroscado nos murmúrios

das ruínas

do meu corpo

retorcido.

Não voltei a pisar

as pedras da rua

que me possuíram

e onde deixei a minha

impressão digital.

Alerta


Não gosto do escuro,

por isso,

recuso fixar o olhar

na chávena do café.

O escuro queima.

Abre-se a porta dos fundos

para poderes entrar.

A noite é uma criança.

Tens de brincar.

São precisos corpos.

Vamos às escondidas

jogar?

Há sempre roupa a mais

a cobrir o céu.

O segredo é o incêndio.

Arde em silêncio.

Encontro-me dentro

do teu pensamento.

Necessito respirar

o perfume líquido das rosas

brancas

que invade os lábios.

Ainda não respirei.

Cortei-me.

Fiz o sangue jorrar.

O poema faz-se

de sangue e carne.

Alerta:

Ser poeta é um ofício

que pode colocar

a vida em risco.

Foge de mim


Foge de mim.

Não queiras saber do que não vês.

Os espelhos estão sonolentos

e não refletem o que sou.

Não queiras saber da nudez da pele,

nem da luz da carne.

Lembra-te que quando a noite cai,

fecho os olhos dentro das pálpebras

e enterro-os debaixo do sono.

Não me perguntes

pelas nuvens de algodão

que carrego aos ombros.

Não procures explicação

para o orvalho perfumado

que trago na boca.

Não há!

Não ouças os passos

que me levam a imagens passadas.

Não te conduzem a lugar algum.

Não procures o sol que ilumina a terra

e se infiltra no interior da pele,

pois descobrirás a sombra

que me acompanha.

Foge de mim.

A inspiração é tão profunda

Que faz doer os pulmões.

Foge de mim.

É possível que aqui

percas a respiração.

Queres voar?


Aterro na cama

e não sou um avião.

Deixo a consciência

debaixo o colchão.

O corpo olha-te

de lado,

vivo,

afogado na fantasia

diluída na pele.

Trazes a faca

para me esfaqueares.

Cortas-me a cabeça.

Não penso.

Cerra-me os lábios

Com a língua.

Leva as palavras duras

para a rua.

Atira o meu coração

pela janela.

Deixa lá o peso das estrelas.

Habita,

mortal,

o reverso do que

há em mim.

Queres voar?

Contra todos os riscos


Está tudo fora.

Eu envidraçada.

Não há aves no céu.

Estão presas do outro lado

da janela.

Roubei-lhes a melodia

e aprisionei-as

nos ouvidos.

Embalei-me nas notas

e compassos.

Esqueci a fome.

Fiz ponto de embraiagem.

Fugi de mim.

Não é possível suportar

a minha alma gémea.

Procurei o ponto de incisão.

Cheguei ao ponto de saturação.

Cortei os veios.

Nada fiz para reter o interior.

É o que conta.

Lubrifiquei o caminho.

O destino é o lugar

onde o medo não cabe.

(Re)nasci no desejo

das horas mortas.

Agora,

guarda para ti o que viste

aqui.

É uma loucura.

São memórias arriscadas.

Por isso,

segura-te

contra todos os riscos.

A fome continua


Deixa-se a pele

pendurada no cabide.

Esvazia-se o corpo.

Reza-se a missa

de corpo presente.

Enterram-se os corpos

nas valas comuns:

lençóis areados.

Ficam as memórias:

perfil sem voz

atrás do espelho.

Capturadas a cores.

Vivas no flash.

A morte ganha vida.

Reduzimos a distância

no encontro dos corpos:

desvio e embate

para o orgasmo.

No final,

deixaste o melhor de ti.

Vieste-(te).

Nada é negativo.

As pessoas morrem

e a fome continua.