Aurélio Malva

Carta ao Zeca


(Com as palavras que ele nos deixou)

Tu querias que esta fosse
uma terra da fraternidade,
uma cidade sem muros nem ameias,
com gente igual por dentro
e gente igual por fora.
Mas tu sabias como era a lei
nesta terra em que quem trepa no coqueiro é o rei,
nesta terra em que eles comem tudo,
comem sempre tudo,
e não deixam nada.
Por isso nos chamavas:
- Venham mais cinco! Traz outro amigo também!
E cada um de nós respondia-te,
com a coragem e a força que nos davas:
- A gente ajuda, havemos de ser mais, eu bem sei...

Partiste.
Passaram já tantos anos
Mas parece que foi ontem!
Parecerá sempre que foi ontem,
porque as tuas palavras, as tuas canções, o teu exemplo,
continuam connosco a dizer-nos
que o que faz falta é avisar a malta,
porque o pão que muitos comem ainda sabe a merda,
porque continua a haver infância que nunca teve infância,
porque ainda há homens que dormem na valeta.

- Mudem de rumo! Mudem de rumo!
- Que a voz não vos esmoreça! Vamos lutar! - pedias.
É isso que faremos. Enquanto há força!...

Do Corpo e da Alma


Ao corpo
(Mesmo se imagem apenas)
Lascivo e semi-desnudado
No mais absoluto silêncio
Assim, sem palavras
Mas tão eloquente, sugestivo, tentador
É difícil ser insensível.


Nós teremos alma
E podemos ter sido feitos
À imagem e semelhança de um deus
Mas não somos santos.
O pecado mora dentro de nós.


Livrai-nos senhor de todo o mal
Mas deixai-nos cair na tentação de sermos felizes
Neste vale onde as lágrimas às vezes são demais.
É um direito que nos assiste.

Mar


Verão
No areal da praia
Um mar de gente berra, grita, fala
(da sua vida, da vida dos outros ou de vida nenhuma)
Mas não é esse o som que me invade

É do mar imenso a voz que me chama e me apazigua:
Ruído branco, música, silêncio
Sem memória nem tempo
Sinfonia da natureza
Apenas

A felicidade


Do corpo não falo
(Momentos há em que
Não é ele que me chama).

Gosto de um rosto
Puro luminoso
Onde a serenidade do olhar
E a doçura do sorriso
Não mentem:
A felicidade existe.

Cantiga


Sol maior
Sinfonia de cor
De luz e calor
Leva a melancolia
Desta toada menor
Que nos enche de dor
E nos tira a alegria