David Lobo Cordeiro

De tantas maneiras me mataste


Levei dois tiros no amor
E uma facada na paixão
Toda ela e seu ardor
Pertence a outro coração

Enforquei-me no desejo
Afoguei-me na ternura
Na doce e suave brandura
Da boca que já não beijo

Atirei-me do alto da loucura
Cortei as veias da empatia
Então morri de monotonia
Saudoso dessa candura !

Impacto


Conheci-te. Foi como o colossal ''Big-Bang'' de onde
surgiu tudo, asteróides, planetas, sóis e meu sangue, agora frio e mudo...

Num dos planetas eu vivia, era um mundo de paixão sincera, as árvores brotavam alegria e o solo ouro. Cada palmo, cada quimera, fruto de um Sol que eu merecia. Sol tão quente, que nem parecia ser gente...

Mas um dia um Asteróide caiu e o meu planeta acabou, bebeu toda a minha terra de um só trago, tão rápido que nem desfrutou. Não precisava ser um mago para fazer tão simples magia: abraçava o meu Sol com tal energia, que pelo meu mundo se espalhava, o calor assim o cobria e o asteróide não entrava, simplesmente derretia !

Asteróides viessem, asteróides caissem, esses que me endoidecem... Que o teu odor e minha dor não me vissem nesta esfera ressequida.

Podias ser o anzol e eu um peixe cegueta numa água perdida. Mas neste poema tu és o Sol, o meu amor o planeta, o asteróide é a vida...

Vermelho cor de amor


Percorro a tua noite cor de fogo
À distância um pôr-do-sol imaculado
E eu como um louco desvairado
Pergunto se o amor é mesmo um jogo

A minha jugular poética faz sentir
O sonho de ter-te, minha liberdade
E eu nesta eterna negra saudade
Funda caverna impossível de escapulir

Então a paz me alcança de repente
És tu, meu fogo, força que perdi
Minha acendalha de ódio decrescente
Vermelho é o amor que sinto por ti !

A musa


Bebi nos teus flancos a loucura
Sabor a jovem nuvem de absinto
És o calor que a sonhar sinto,
A noite que à noite me procura

Quando ris, teus olhos param no tempo
De tão subtil teu corpo flutua
Pisas ao caminha o próprio vento
E tuas pegadas ficam, como na lua

Eternamente gravadas na minha mente
Facas cravadas que meu corpo não sente
Ainda está dormente daquela última vez
Que a tua língua humedeceu minha tez...

Cheiras a rocha que toca o mar,
E eu mar que marés-vivas inventa,
Somente para te abraçar,
com paixão cega, numa fúria lenta

Agora finje que nada leste
Ou que nada entendeste...

Fiat Lux


Serás tu a mais pura cor,
Essa que com seu esplendor
Esboça o Arco-Íris primeiro?

Ou serás a Lilith feroz
Que em vez de desatares meus nós
Ata-los com olhar interesseiro?

Será a paz, a grande busca, o espanto
Ou um vulto fugaz, luz fraca e fusca, desencanto?
Flatulência contida que me deixa inerte
Ou espirro nutrido que me liberte?

Serás o trigo que a terra rasga
E o vento que a pá esforça
Que retalha o grão, que o moe?

Não sei se és o fermento, minha força
Ou o pedaço de pão que me engasga
E o ombro do ser que o coze, que dói

Serás o dom de ver e ouvir
E o prazer que eu quero sentir ?
Serás tu um coma profundo
ou a razão de todo o meu mundo?

Deus Natura


Deus é o mar que cria a chuva
E é a chuva que na terra cai
Suave solo molhado, água turva
Fonte por onde Deus sai

Há um ente que acredito :
A nossa Mãe Natureza
Essa eu tenho a certeza
Que tem um poder bendito

O próprio poder da vida
O ser que em mim se formou
Não uma força escondida
Aparte de quem eu sou

A Natureza é bela e antiga
Criada por um Deus de ninguém
Não remedeia o pecado e a mentira
Pois é apenas flor e a cor que o céu tem

O Homem o ambiente destrói, não percebe
Que Deus não faz, pede favores
Idolatrem os rios, o Sol e a neve !
Tirem dos jarros todas as flores !

Deus não tem face, tem faces
Nem tem cheiro, tem cheiros. . .

Virgem Maria Rita


Sabia tudo sobre mim
Fruto da brizomancia aplicada
Era eu o sonho e o escolhido para o fim
Da tal ''inocência imaculada''

A obcessão crescia como nunca antes
Perseguição cruel da harpia feroz
Então ouvi um silvo; era ela e sua voz
Lábios mel carnudos, olhos brilhantes

Expliquei-lhe então: ''que o amor
cresce em nós como uma flor,
e para isso é preciso uma semente
Entre a gente não houve calor,
e a raiz sem esse morno ardor
teria um fulgor decadente''


Dei-lhe um abraço, beijei-lhe a face e por fim
disse-lhe que não desistisse de outro amor assim.

Arritmias


Meu coração tem uma arritmia acentuada
E nessa peculiar batida irregular
Toda a minha esperança fica prostrada
Diante da vontade de viver e continuar

Quando bate naquele ritmo certo
Vejo um futuro cómodo e garantido
Mas ao cessar o bombeamento repetido
Vem a excentricidade, aqui me liberto

Tal evento é um modo do meu coração
Por segundos chamar-me à razão
Dizer-me que estou vivo em contrapasso

Como tal, não vejo como um mal
Esta palpitação descontínua e anormal
Lembra-me apenas que o tempo é escasso.

( sem título )


Nesta folha branca
Minh'alma perde-se em vida
Branco lembra pura
Pura lembra pele
Branca pele pura
Lembra-me teu corpo que perdura
Na minha mente tão confundida
que até a forma do poema
lembra tua cintura

Aguaceiro


Foi a manhã, vista um pouco turva
Sorriso breve antes do beijo lento
Foi a rosa entreaberta antes da chuva
Foi a brisa encontrada antes do vento

Foi a noite e a inocência da demora
Foi o amanhã; verde janela aberta
Dois corpos nús que não vão embora,
E acordam uma praia ainda deserta

Foi a paz, o silêncio antes do grito
Foi a nudez antes do amor consumado
E foi depois o cântico interdito
E todo este poema questionado...

Mas o que vale e o que fica
E indubitavelmente se auto-justifica
São aqueles momentos bons
Os cheiros, os toques, os sons...

Desejo-te quando longe


Quero-te tanto não te tendo
Tendo-te tão pouco te quero
Não te tendo não me entendo
Ao ter-te não me tolero

Ao ter-te apenas pouco, te amo
Meros minutos . . . eternidades . . .
Logo cessam as vaidades
Quando partes, logo te chamo

Imploro aos ventos que apareças
E a prece ao ser ouvida
Sopra teu corpo, alegre promessa
Que terei depois da tua partida...

Engodo


Num morremorrer cheio de ilusão
João compra a paz, vil tesouro
Dá o pão e o ás àquele cabrão
Alquimista que da morte faz ouro

Com a ânsia nos nervos camuflada
Vê-se com o garrote na veia
Então a ponta rompe, deslumbrada
Uma vida mais que então esperneia

E é naquela artéria já sem movimento
Sentença de uma sociedade empodrecida
O jovem rapaz vê um clarão, sente o vento
E eu daqui já sinto o cheiro a gente sem vida

Enterra-se um que nasceu defunto
E mais ninguém liga ao assunto.

Sonho de voar


À revelia de todos os meus sentidos
Meu espírito abraçou a rebeldia
O momento chegou e nem o sentia
O dia estava calmo, sem ruídos

Tal paz me invadiu, inconsciente
Dormente, minha atenção nem pressentiu
A razão posta de parte consentiu
Tal acto irracional mas coerente

E quando lá do alto me atirei
Por milagre ganhei asas e voei
A vontade venceu gloriosa a gravidade

Hoje sei que nem a morte apaga a vida
Se sonhar for realidade conseguida
Hoje sou alma etérea, luz branca sem idade

No momento da verdade
Salta de encontro à vontade !

Poesia omnipresente


Minha poesia por Lisboa espalhada
Em cada esquina e colina, misteriosamente
Pode ser pouco, para muitos nada
Mas é como ter minh'arte omnipresente

Letra a letra, rima a rima, o povo entende
Que alguém resolveu su'alma partilhar
E se ao passares, um teu breve olhar se prende
É o bastante, e tal dádiva não se vende
Dá-se, para o tempo o perpetuar.

Os tais


Já saltei muros, entrei em bairros
Um tanto ou quanto impenetráveis
Galguei caminhos, procurei atalhos
Nem por satélite observáveis

Troquei sonhos e afiadas filosofias
Vi com outros olhos, outros mundos
Com os mais nobres e fiéis vagabundos
Partilhei riquezas, espalhei alegrias

Comi merda que o diabo defecou
Gozei o beijo que Deus me enviou
Coisas que não sonham, se não sentiram

Tudo isto porque sou dos tais
Daqueles contra os quais
Os vossos pais vos preveniram. . .

Dégradé Noir - Blanche


Ontem pensei morrer
E levar comigo toda a amargura do pós-ternura
Levar todo meu corpo, parte da minha alma e deixar a loucura
Transpôr o outro lado do anoitecer


Ontem pensei morrer
e deixar este mundo belo e imperfeito
Dar o último suspiro com um estranho trejeito
Ontem pensei no definitivo adormecer

E porque ontem pensei morrer
Hoje acordei cravado de gana
Hoje meu espírito intensamente emana
uma enorme vontade de viver

E porque quem vive, morre
quem morre, viverá
E nada melhor me ocorre
para viver de novo, já !

Pó e azia


Se a poesia fosse virtude
Seria eu um virtuoso?
Dar-me-ião espasmos de vaidoso ?
Grunharia impropérios amiúde ?

Se a poesia fosse visco esbranquiçado
Ou um vomitado intelectual
Seria eu um asco verde, um anormal
Ou batoque a ponto-cruz costurado ?

A poesia não é, nem tem de ser
Estudo aprofundado de ciências
Ou remédio santo para carências
Nada que a palavra possa descrever

Poesia é simples pura energia
O ''eu'' espiritual mais profundo
A minha cerebral alquimia
É meu céu, minha terra, meu mundo !

Círrosis Divinis


Resíduos se acumulam
No fígado de Deus
Detritos filhos seus
Por ganância deambulam

A cirrose vai avançada
É incurável como o não crente
A Terra, Mãe destroçada
A morte, Era eminente

A Divindade vai sorvendo
A maldade desta gente
E a cirrose vai crescendo
Numa contagem decrescente

Insensitivo


Pergunto-me se sentir é indispensável a todo o ser
Se a dor é inevitável no acto de parir
Se a lágrima tem de cair num esgar a rir
Se a pena tem de vir com o lento retrato de morrer

Pergunto-me se o mundo seria perfeito
Se a saudade fosse ausente depois de anos de ausência
E se a mentira não fosse um direito
A essência da verdade não abria falência?

Será o mundo belo derivado ao amor?
Ou será bom o amor apenas por contraposição à dor?
Haverá saudade sem o abraço da chegada?

Deixarão todos os pássaros de trinir
Deixará porventura o Homem de os ouvir
Se uns olhos cegos não colorissem a madrugada?

Se terminasse o reino do exprimir
Estar calado seria pura eloquência?
Seria o mundo uma eterna maledissência
Sem a arte, sem o toque, sem o sorrir?

Maldiçaras


Que amanhã esteja um dia de inverno
E o céu vermelho-negro terror, cor do Inferno
Que chovam raios, trovões e coriscos
Que os peixes não mordam em seus iscos

Que todo o trigo padeça
E o pão deixe saudade
O canibalismo que aconteça
E o fim da amizade vos enlouqueça
Pondo termo à liberdade

Que ao sustento falte o tostão
Tormento de miséria vindo do Nada
E que a criança de fome desvairada
Lamba o pó que rasteja no chão

Que amanhã esteja um dia de inverno
O mar lívido, a outra cor do Inferno
Que defequem cobras, verdades e lagartos,
Do Fundo que trepem pestes, mentiras e ratos

Que reine a Ira e o Azar, num luto de almas sós
Da dor que nasça uma nova Grande Era
Num fim que o mar engula a terra
E o céu irado caia sobre vós !

A gana e a ânsia


Um homem tinha um lápis sem bico
Um lápis novo, mas ainda abstinente
Inteligentemente afiou-o com afinco
E ao terminar tinha um útil lápis pungente

Porém, antes de começar a sua arte
Olhou para a extremidade oposta, mais à frente
E pensou ter um acto coerente:
Afiá-la para ter afiada a outra parte

Afiou e tornou a afiar, sempre a mesma história:
Os bicos partiam-se sucessivamente
Incrédulo mas insistente continuou
Até que ficou só com a memória
do lápis anteriormente existente . . .

Despertar


Um dia acordas e acordas também para o mundo
Sonhas em adulterar este tempo infecundo
Anseias por dar corpo à semente feita ideia

Primeiro debastes-te por sair da sonolência
Depois ficas viciado na coerância
Luz que não cega ou incendeia

Do imaginário partes para o objectivo
Do imaterial para algo efectivamente
E coerente ou incoerentemente
Cedes ao irreal, dás à luz o teu crivo

Tudo o que fora antes pensado, é processado
Do limitado profanas o limite
E o tal acto nunca antes imaginado
É subitamente alcançado, e rejubilas . . . admite !

Apenas eu


Dizia-me Ela antes que eu era seu Deus
Ela agora diz-me que já não é crente
Deixei eu de ser gente por esse corpo quente
Neste mundo cão repleto de ateus

Dizia-me Ela antes que comigo voou alto
Ela agora diz-me que já não sou actor
Mas um mero delator, que não voo, apenas salto
Agora diz que sou fogo sem asas, sem fulgor

Disse-me ela há pouco que já não há paixão
Nesse segundo saltei de longe
E já falta pouco para ver o chão.

As leis cientificas do amor


A linha à volta da tua face
À Lei de Darwin iluminada
Levou a ciência a um impasse:
Ter tal linha num humano recortada

E se olharmos teu corpo, tuas proporções
Vemos a Regra de Ouro e suas noções
Exemplarmente exemplificadas

Por isso meu amor por ela é de forma tal
Que até as Teorias da Relatividade Geral
Sem ele teriam de ser alteradas

Este meu doce encanto por ti
Consegue-se ver chegando a Pi
E inutiliza a Lei da Gravidade

O Efeito Borboleta levou assim
À Teoria do Caos que provoca em mim
A reacção química da saudade . . .

Deus Verde - Vida


Comi um prato cheio de fome
Bebi um copo cheio de sede
E com a fome e sede de um titã fiquei

Mas essa fome e essa sede
Não era de conduto, ou de água, mas de verde
De um verde que eu sempre amei

O verde das colinas, do mato agreste
O verde do caule da flor silvestre
O verde de todas as cores também

Um verde que já vi, mas nunca senti
Coloração que já mastiguei, mas nunca engoli
Cor que nunca vi na alma de alguém

Talvez numa rara e remota natureza
Onde o Homem não chegue, esteja a beleza
E a cor verde-vida, pertença de ninguém.

Sereno povo


O povo anda seremo, sereníssimo
Concentrado na ''vidinha'' e miudezas
Enquanto o Governo se afunda em incertezas
Confiante na predilecção do Altíssimo

Será espécie de cobardia afoita
Ou descrente valentia acanhada ?
Será talvez a consciência que pernoita
No ''valium'' relento de vida nada

É que nem a sabedoria nem a juventude
Acaba com esta inquietude:

O povo mais antigo já nem protesta
Limita-se a calar, comer e ouvir a orquestra
Recordando a antiga glória, hoje vã

E se precisássemos hoje de Abril
Era preciso leitinho, o Facebook e antifebril
Para não constipar os meninos da mamã

Acorda povo, acabou a sesta
Acorda a revolta que a entranha manifesta !
Acorda para poder existir um amanhã !

Amor cerebral


Meu cérebro pertence-te, é teu
Ele oferece-te exclusividade
É assim desde o dia que absorveu
Tuas feromonas, pura amorosidade

A minha área tegmentar ventral
Idolatra teu corpo com avidez
E com sofreguidão animal
Anseia pelo teu corpo outra vez

Até que a área do núcleo caudado
Banha-me a futura expectativa
Terá a forca corda esquiva ?
Espera-me o enlace por ela esperado ?

O amor mata, o amor cura
E esse teu olhar de felina
Atira-me do premontório dopamina
Mergulho incessante de loucura !

A morte da maldita


E de manhã de novo o sangue puro
O lacrimejar dos olhos ofuscados
A coragem não está e o dia escuro
Revela mil deuses ocupados

Na boca o bocejo interminável
Traça o duro rumo a ''Oriente''
Ficar parado é fatal, oxidável
E por agora o ''Norte'' está ausente

Na esquina o descuido espreita
Já longe a sombra roubada grita
Então o cérebro maravilhado se deleita
Com a inevitável morte da maldita

E de manhã de novo o sangue puro
E cada vez que ele abre os olhos há um muro
E de manhã de novo o sangue puro
E cada vez que ele abre os olhos é mais duro . . .

Uma réstia


Eu amo-te tanto... Portanto
Um dia destes, porventura
Se deixares de amar-me com essa ternura
Se deixares de amar-me com esse encanto

Um rasgo nos céus de abrirá
E um manto de lágrimas cobrirá
Toda, toda a terra de pranto

Então o mundo incrédulo saberá
Que um outro amor não haverá
Com tal lucidez, com tal espanto

Então o mundo compreenderá
Que meu amor não cessará
Crescerá quem sabe outro tanto

Permanecerá, como tal
ávido de teu encanto...

Negro olhar


A brilhante escuridão do teu olhar
Energiza e ilumina a minha vida
Divino feixe de luz negro-luar
Cor de paixão a toques de violeta nutrida

és de tal modo misteriosa
Que conhecer-te é pura cartomância
Teu interior é uma secreta prosa
Revestido por pele de fina elegância

és de tal modo um livro fechado
Que é deveras impossível folhear-te
E a subtil inatingível tarefa de amar-te
Desafio pelos Deuses planeado

Esse teu negro e quente olhar
Leva-me à porta das trevas
Consome-me no teu desabrochar. . .
Quero entrar ! Quero que te atrevas !

Tubo de ensaio


Perigosas almas supremas
Pairam no ar sobre nós
Troçam dos maiores teoremas
Silenciosamente, de olhar atroz

A Terra uma enorme incubadora
Experiência morosa, mas promissora
Testando a Humanidade de perto

A extinção dos grandes sáurios explicada
Foi a eficaz solução encontrada
Para a natureza seguir o rumo certo

Sei tudo isto porque sonho
Vi também um ser medonho
E nem Deus será capaz
De perdoar a tal satanás.

Prestidigitador


O som de um cometa a passar
Um gemido puro sem fim
É o bicho que tenho em mim
Que não pára de pensar

Vai, dissolve-me o corpo no espaço
Inócuo, estridentemente mudo
Verdadeira e eterna ilusão, tudo
Logro mais fraco que um forte abraço

Isto não é arte nem poesia, não é nada !
É maresia, alquimia, a magia de um vulgar ser
Pois mais vale não ser do que apenas parecer
Visão molhada em pão e ovo, enfim, panada

Este poema é sobre o que não é
Sobre quem não tem pretensões a ser
Fala da força de querer aprender
E de quem se ri da inteligência até

É tudo uma pura ilusão
Algumas palavras, um papel, uma caneta na mão. . .

Mar, vida que navego


Trago no peito um oceano de ondas quebradas
repleto de silvos feitos gaivotas embaciadas
por um céu-nevoeiro que se instalou no meu leito

As minhas mãos erguidas são como velas
Que se debatem frente ao vento, caravelas
Que avançam destemidas num mar desfeito

A mim já só me salva um novo mundo
Uma ténue brisa a roçar um céu fecundo
Uma terra de alvura oponente da clausura

Só paro quando vencer estas tormentas
Ó grande pélago apenas me acrescentas
com essa assaz voracidade mais bravura !

O biblioclasta


Não me rendo perante a escrita
Quanto mais vergar-me à memória
Entregar-me? Nem à Bíblia bendita
Nem à criação, nem a ti nem à História

Destruiria todas as rimas, todas as prosas
Todas as frases e pensamentos
Todas as mulheres escritas e as rosas
Criadas para tais carnais momentos

Não me vergo perante o teu Deus
Quanto mais vergar-me à poesia
Entregar-me ? Nem à noite nem ao dia
Nem ao mundo, nem aos céus, nem a Zeus !

O momento sublime que escolheria?
A lenta conflagração em Alexandria...
Ardia tudo em fogo lento:
O Homem e seu testamento !

O início da mudança


Hoje sou um homem alucinado
Que procura desesperado
Um sentido, uma guarida

O tempo passa e minha mente
Diz-me que o passado está presente
E o futuro ausente de minha vida

Procuro angustiado um rumo
Um contra-peso, um fio-de-prumo
Uma porta aberta, o fumo branco

Um novo dilema ou então uma bala perdida.
Prefiro a antecipada despedida
Que perder meu sorriso e seu encanto !

Espécie anátema


O ambiente, infelizmente e incoerentemente
É assunto para cinco ricos e pouco mais
Até o oxigénio faltar lentamente
Nos pulmões dos humanos, animais

A floresta é diariamente cortada
A espécie hoje extinta, aponta outra ameaçada
Num desiquilíbrio perfeito e imoral

A nós mesmos fazemos mal
Ironia engraçada, charada fatal
Milhões de anos de evolução para nada

A Natureza lentamente morre
E a espécie anátema sem Ela
Extingue-se e Ela se voltar a ser bela
A suprema inversa ironia ocorre

Eu sou um homem também
Mas Deus está melhor sem mim, sem ninguém . . .