abrigaram-me na palavra paciente e sincera
envolver-me nas lágrimas de girassóis a gemer é como prolongo
a vida
até à palavra se amar doce e inocente
como quando corro inesperado seduzindo as letras uma por uma
e sufoco a fecunda escrita na melancolia que é tão minha...
ou a vida é curta e antónimo de amor líquido
ou por agora recolhemo-nos na própria ideia de morte
sei de teres um saco que fala sobre o sono ainda misturado
num copo em brasas
curioso por bater
com a minha sombra diante à criatividade desse saco
nele intercepto mensagens alheias das noites cheias de fins
ou acasos
todos nos dizem para cantar sob o carreiro gélido
onde verdes árvores lá fora se revelam na voz de silicone
por trás das portas a despenhar-se sobre cadeiras retiradas
contra os buracos negros
enquanto mesas se entrançam no ar às voltas
como respiro e interrompo
trepando o fumo trôpego dos garfos e talheres confusos
a romperem os sóbrios guardanapos de tecido diamante
derretendo-se na luz que flutua leve
talheres no princípio
garfos no cume empoleirados no pano rústico preso à jarra
que toca a melodia desaparecida
que esmaga as mesas
que torce a voz contra as portas
que toca a própria mão alastrando o saco
e se bebe na loucura nocturna
o soalho de madeira rubi ressente-se entre os rolos de árvores
e baloiços de folhas afrodisíacas
a amolecerem espantadíssimas nas sobrancelhas queimadas
com imagens panorâmicas do saco
como a rodar nos rodapés que explodem dentro dos vernizes
a espalharem-se p’la poeira das vidraças terríveis
os relógios fumam os céus indignados aceitando-se corajosos
e reles vistos à lupa
o sol de aço corta a vista como os seus raios de fogo cortam
as mãos
o fogo cresce
aumenta o sangue largo
enquanto labareda a roçar no coração
e o coração insufla e inflama o corpo que se ergue
e estanca o lume
manuscritos voam em cima dos pratos
os pratos compostos por tintas em escada finalizam-se à vista
sombrios e tristes
desde a força profunda das mesas
até se coserem às secretas portas
que fervem o trilhado coração do saco aos pedaços
de fibras entranhadas
escorrendo à volta dos corpos
desenhos de luvas
peúgas originais retratos folhas plantas
gaiolas por baixo de alcatifas submersas
cigarros dentro uns nos outros onde a água trabalha
e escalda esse pressagioso ofício
um castanho cavalo gira perto do iminente sofá
e o cavalo cavalga dentro das paredes
a estoirar a ventania obscura
e engole
uma almofada de acre vinho
e no próprio relinchar como desabrocha!
tapeçarias de névoas esvoaçam entre fragilidade e angústias
via o saco a inundar-se no arame farpado
com que o ergo
até sufocar o amanhecer fusiforme
a saltitar nos nós de sangue
uma breve leveza de ofício
e rasgam-se fissuras na carne como outra carne funda
e ensanguentada
em estado de choque
assim irei aprender também trigonometria astrofísica
dos cometas às galáxias inundadas de gravidade
enquanto saco é elevado
nós somos elevados
e arrastamos as imagens de uma ponta à outra
devoramo-nos
na engrenagem atómica
em frente aos vertiginosos olhos anda o saco a pensar nas coisas
o saco desmancha a doçura do pescoço
sangra-o nas mãos vagarosamente
à raiva tão veloz
canta nas fracturas da terra na cabeça movida por circunferências
saco chato dorme a alumiar a escuridão
uma chatice mortal!...
mexe-se aquele saco com pensamentos inquietantes
sei-o inquietante
é mestre e eu o aprendiz
com a cabeça no fundo dos meus joelhos a estilhaçar
devassa os astros
explodindo-os de encontro às estrelas
e todas as altas estrelas bailam na ponta dos dedos pretos prata
a deslizar na coxa dissolvida
contra espirais cadentes os astros são a sonoridade
cantam flores e jarras
e as estrelas o ritmo maldito feito de cera luminosa
em que as trevas vagabundam
nos espelhos rápidos
dentro da penumbra pendidas nos aromas megalíticos
que vão de sabor para sabor
pela aragem abaixo
a levitar na sua matéria enlouquecida
e morde a luz
porque os perfumes celestes
se despedem e diluem o espaço e o tempo
como num avanço e recuo doce
estremecendo as distâncias em tempo irreal
deixo-me cair anterior a esse saco entrançado nas veias adentro
e racho as mãos à velocidade de um galho precioso
na dúvida
alastram-se as abas que dançam
enquanto o saco sufoca numa janela contorcida
deambulo
na opacidade dos espelhos e vidros
que nunca mas nunca falam dele ou de mim
– o saco, por exemplo...
vou contando todas as vidas tristes que se amadurecem
no fundo dos meus olhos a passarem atrás das coisas gastas
em cada rua vazia espero pelo seu sabor mudo
e desapareço naquele estremecimento que sai virgem do chão
por onde caminho novamente sombrio
amo a substância da dor
sombras em pranto correm de um lado para outro sem olhar
para trás ou para os lados ou nem sequer a pressenti-la
de frente só me apaixono pela ferida daquela transparência
que incide na oculta beleza
porque durante o silêncio da noite tudo respira tranquilo
na mais breve insolvência musical
e na cama ouço a inocência das eternas servidões...
em todo o andar doido dos pais
escorrega sempre um sorriso leve entre os braços puros
e as cabeças dos filhos deslocam-se
os corações ao alto
como tremem e tremem por dentro
como são tão silenciosos corações e deliciosos sorrisos
e os pais envolvem comovendo-se
os braços apaixonados
os rostos dos pais
inundam-se nos lados das suas bocas
pelas veias e sangue arterial desentupidos
e os filhos rodopiam nos dedos formosos
no chão escorregadio
os filhos abertos ao novo amor sentam-se nos colos calmos
dos pais sentindo todo aquele momento visceral
e eterno
movem-se em silhuetas vivas
atentas a tudo o que se passa e mexe à sua volta
procuram o manso amor a florescer
na cadência absurda das coisas inseparáveis e escorregam
nos pequenos corpos celestes
enquanto a paixão surge numa sombra uma paixão quente fria
os pais têm urgência
nesse amor são do dia para a noite
progressivamente maiores e mais fortes
todos os filhos a certa altura perdem-se
nas brincadeiras para que os pais os encontrem e dancem
a levitar junto ao tecto
junto às janelas que batem noutras janelas
que batem por cima nas cortinas loucas por voarem
com a brisa daquele minúsculo vento levíssimo
a transbordar de imagens suores
e flores deambulantes
mas amplamente perfumadas
e o vento a respirar
dos movimentos doidos dos filhos encavalitados nos ombros pérola
dos pais
são vestígios desse doce amor
a erguer-se dentro de todos os órgãos
até chorarem os corações e os sorrisos fora
os seus lábios estão na fímbria do andar pontual dos pais
mas os pais atravessam a morte desértica
pelos seus filhos
os pais são realmente heróis anjos de guarda que mergulham
no magma da terra adentro
e esmagam-se no seu interior por eles
os pais devem ser as coisas mais frágeis e dóceis do mundo
porque os filhos deformam a expressão
do próprio mundo
e alagam os pulmões e cabelos dos pais nos brinquedos de fogo
e nos jogos adúlteros um pouco mais tarde
os filhos sabem aos pais
andam à velocidade das ruas intermináveis
dos becos frios
contudo confidentes
e os pais os mais elevados Deuses
chegam a rachar os seus próprios ossos através da saliva
e lágrimas dos altos filhos
amor mortal
amor a desaparecer no lusco-fusco
todo esse triste amor atira-se precipício abaixo sem pressentir
o desassossego espiritual dos filhos e pais recalcados
pelas submersas infâncias
todas as palavras que os filhos escoam pelo ar negro
arrancam a doçura do mar do sol
mas também das casas
dos quartos intensamente alagados pela força anterior
das belas memórias
como a interromperem-se num vazio corajoso e recente passado
os pais desenterram essas lembranças
como escapam nelas também
filhos e pais a queimarem-se melancólicos
depois certo dia os filhos
numa rara homenagem
escavam de novo o chão da sua casa e penetram solitários
dentro dos quartos
engolem toda aquela água d’alfinetes pretos
para se entrelaçarem nos velhos sorrisos dos pais
vêm à superfície
com os pais às cavalitas
e como brilham o recente caminhar!
sentam-se hoje nas mãos uns dos outros partilhando o choro nu
os pais embrulhados nas roupas dos filhos de alto a baixo
tocam-se em ambas as peles
nos ligeiros poros esvoaçantes beijam-se
nas faces viradas ao avesso com o relevo da luz
a asfixiar os seus reflexos
e as luzes solares inclinam as estrelas cadentes equilibrando
filhos e pais
num sorriso possível sorriso amante
nos pensamentos magnificentes
nada há na morte
pensam filhos e pais pois a vida incha toda a matéria que se mexe
com toda uma violência e alegria certas
germinando por si
o incondicional amor que nas profundezas loucas dos filhos
desentranham o coração manso dos pais
que desliza no sorriso
saboroso dos filhos
que desliza na sua doçura
deslizando na força do amor
que desliza na violência sonâmbula do medo
e crê-se
que o amor entre pais e filhos por fora e por dentro
deve acontecer
e ao acontecer devemos acreditar
que por fora e por dentro está todo o nosso leal amor
e todo o leal amor acontece
pus-me a espremer a atmosfera coberta por um sabor a frutos
selvagens caminhei de tronco nu em cima desses enormes
campos silvestres
era manhã ainda e os pássaros de uma espessura incrível rodavam
o vento cinza ao contrário
decidi erguer as pernas como a brincar com a névoa que toca
suavíssima na linha do céu azul liquefeito e beijei essas aves
junto às rajadas de chuva que estremecem no meu coração
depois deitei-me por baixo das suas asas em giesta e escorro
como uma nascente abandonada pelas estrelas no quebra-mar
as aves atravessam agora um aglomerado de bosques sombrios
muito húmidos frescos com cheiro a nuvens carbonizadas
flores a voar com hálito a sombras sugam abismos maciços
entre astros e cometas a roçarem-se numa mágica doçura comovente
durante a minha eternidade campos aves céu mar frutos nuvens
estrelas e bosques adivinham nas minhas mãos um olhar melancólico
onde danço em cima de pedras preciosas de tédio em tédio
e num só golpe trémulo nos lábios diamante a minha majestosa
harmonia desencadeia novos silêncios...
cá vais tu de vértebras nos braços a correr pelo estrangulamento
do ar que te leva que te faz voar com o sangue como asas opacas
mas brilhantes
de boca na cabeça e pulmão na barriga tentas seguir uma travessia
exemplar sem erros sobrenaturais
os rios são pretos as árvores rasgam as nuvens as plantas sangram
por entre as casas que vais vendo
a vida é foneticamente fodida puta da vida mesmo virada de patas
para o ar em labaredas
e a vida floresce-te sabiamente...
perdesses o medo gritarias toda a noite sem um arranhão sequer
erguerias numa taça de flanela o tamanho do medo miudinho
e saberias que a tua memória se desfarela menor ao medo
que te consome e controla a força com que te deitas
ou se morres vertiginosamente
trago da beleza obscura o alimento que me faz viver secreto
e tão distante...
ó meu novo amor
choro ao recuar a morte prematura contra os robustos estilhaços
do inferno bem visível e a vida compacta correcta morre
às mãos frívolas desta triste humanidade...
vai caindo a manhã mortal
a bainha da sua luz está longe
mas enche-me a boca nua de folhas e poeiras que correm loucas
entre o sol a perder-se no oriente
e tubos de girassóis elementares únicos
a esquartejar o rosto
trancando os buracos dos ossos que se estrangulam a meus dedos
e de ponta a ponta da carne pulsa a beleza do ar se amo
eu fugia com o reflexo geológico a travar-me o sangue solar
escorrendo nos meus macios braços
por entre ribanceiras e encostas abaixo e acima
feito palavra delicada
corria como um violino d’água a pulsar inteiro
ao som do esquecimento das coisas dignas
estendo-me depois num mole poço de flores com os pulsos
mergulhados nesse sangue matinal estancando-o
enquanto o seu intenso perfume me batia
dentro da barriga
a barriga cheia de cócegas
saía fora dessa barriga doida
movia-se para o lado desta casta tarde
a morrer cansada
nestes lábios que sobem até tocar na noite
e dizer-lhe baixinho:
bom dia meu amor mais lindo!
cá vais tu de vértebras nos braços a correr pelo estrangulamento
do ar que te leva que te faz voar com o sangue como asas opacas
mas brilhantes
de boca na cabeça e pulmão na barriga tentas seguir uma travessia
exemplar sem erros sobrenaturais
os rios são pretos as árvores rasgam as nuvens as plantas sangram
por entre as casas que vais vendo
a vida é foneticamente fodida puta da vida mesmo virada de patas
para o ar em labaredas
e a vida floresce-te sabiamente...
dever-me-iam ter dito que não existo e que nunca existi
neste mundo
ou antes um fragmento suspenso da escuridão estalasse a voz
ardente espalhando a criação na boca adentro
a boca purificaria as veias silenciosas das mãos a boca esmagaria
a ardência da carne a cantar bem perto no fundo do sangue
as células do sangue mover-se-iam entre o universo e a fala
rasgariam as palavras eternas desta boca tão feliz
jamais me deveriam ter dito coisa alguma
talvez me pudessem ter dito para eu correr absorto
todo nu sem voz submersa no meio da carne pura
a esconder-me dos gemidos da noite calva
os gemidos a esconderem-se de mim distraídos
e os movimentos amplamente puros cheios de luz e pó
passariam a água sobrenatural
como sombras transformadas a arranhar esta doida cabeça
dever-me-iam ter dito que os mortos caçam as manhãs
as tardes as noites – as horas em inércia