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O centro na distância

1981

António Ramos Rosa

António Ramos Rosa

António Victor Ramos Rosa, foi um poeta, português, tradutor e desenhador. Ramos Rosa estudou em Faro, não tendo acabado o ensino secundário por questões de saúde.

1924-10-17 Faro
2013-09-23 Lisboa
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Não-Canto a Camões

O dia em que eu nasci moura e pereça,
Camões
Oh! que não sei que escrevo nem que falo!
Camões
Morrendo estou na vida e em morte vivo
Camões
Junto de um seco, fero e estéril monte
Camões

Quem gritaria se eu gritasse
se ———————

A impossibilidade do grito o não-grito do grito no ilegível silêncio entre as letras do livro letra a letra no livro

Vejo um muro branco
sem uma sombra

A impossibilidade do canto é a possibilidade de uma parede de palavras que aniquilam uma a uma o silêncio do canto

Um braço
até ao muro

O poema é devorado letra a letra por um silêncio que o atravessa sem tocar nas palavras nem no silêncio do poema

Na aridez do frio
nenhum insecto vibra
nem uma fibra estala

Quem pode erguer o canto
sem uma pedra
sem uma sombra
sem um grito

Não há sequer a sombra de um grito
Nenhuma sombra é um grito

A impossibilidade do canto é talvez a possibilidade de um impossível canto    Com as palavras nuas e vazias de uma pobreza exausta talvez possa ainda ouvir o rumor de um chão e um silêncio de ervas e de frases na ausência do amor e no silêncio de um corpo destroçado

Só a página em branco
e a ferida sem nome
no silêncio

O sangue? Será sangue? No insondável silêncio em que se abismam as palavras?

Só no silêncio da página poderá erguer-se a palavra do silêncio inacessível o centro ausente da linguagem o extremo em que a palavra se destrói e renasce no grito que se cala na p a l a v r a

Obscura promessa do silêncio da palavra

A palavra nada diz
ou diz tudo
na iminência de o dizer

O silêncio fala na palavra ou é a palavra que devolve o silêncio à palavra que se segue ao espaço entre as palavras?

Um corpo não um corpo à distância de um corpo

no vazio da palavra
à espera da palavra

a palavra que ilumina o silêncio que ilumina a palavra

Um rosto incendiado ou só um rastro
branco na brancura
porquê oh porquê

não vejo mais que um sulco
um ponto
uma palavra?

Surgirá um dia o rosto deste rosto deserto?
E será ele o teu rosto que nunca será teu?

Na luz do eclipse
vejo um rosto vazio
um rosto ou rastro errante
— o luminoso enigma?
as sílabas do sol despedaçado intacto
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Um Espaço de Silêncio

(Proposições sobre a pintura de Vieira da Silva)
O instante
suspende-se     metamorfose da abolição

VISÃO VAZIA

restituição do mínimo no ABERTO

as primeiras minúcias de um estranho e límpido mistério

o puro amor a cada coisa
o absoluto no ínfimo
Presença-Ausência     Ausência-Presença

Não o além do mundo mas o além no aqui
o aqui entreabrindo o Instante
a distância interior constelando-se em silêncio

relação liberta livre
com o desconhecido o irrevelado
não de um outro mundo mas do mundo outro
(o Mesmo)
a infinita abertura do mundo na luz do seu silêncio

na profundidade liberta
em espaços de espaços
o diverso no uno
indissolúvel unidade do ínfimo e do infinito

janelas ou portas que se abrem
(que abrem para:)

Libertação da opacidade     libertação da Ausência
Ausência extrema da Presença desaparecendo
desaparecida
tudo raiou de sua luz de silêncio e sombra

le vide n’abolit pas l’inconnu mais l’éblouit

uma imponderável ponderabilidade de palácio-aéreo
as salas abriram-se

destruição das aparências reinvenção das suas cinzas
filhas do relâmpago da Presença
lampejos da Presença no momento da desaparição

matéria de um sabor e sabor de uma matéria
que respira em minúsculos abismos

transubstanciação da fulguração total
as cintilações imobilizaram-se no silêncio
de um rastro no vazio
constelado

Tudo arde ainda na minuciosa paciência de uma
dádiva na subtil pontuação de uma apaixonada visão

Intensidade e tensão
da atenção pura
que sabe conter o que não se pode conter

estremecimento que não treme
tudo respira no silêncio
tudo se tornou respiração do silêncio

amorosos dedos de um amor da terra
revelam suspenso
o incessante fluxo
rios de uma extensa estrela tensa

teia aberta
dilatando-se     retendo-se
suspensa e retida
pela interminável e silenciosa paciência
das raízes da terra
estrela de sabor a pão
tapete de velha e antiquíssima sabedoria
com um cheiro a trigo e de amêndoa
estrela
e navio submerso
multiplicando-se no espaço
multiplicando o espaço

pedra de infinita transparência
em que se lêem os sonhos e as sombras

paciência ardente
que dominou a fascinação da miragem
pela fascinação clara do vazio

vazio amante
constelado
terra recuperada na distância da infinita proximidade de tudo

mão que penetrou no impenetrável
com a suavidade de uma flexível inflexibilidade

as múltiplas portas     salas     janelas     células
a permanência do intacto
a infinita intensidade do contacto
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Uma Substância de Sombra Um Aroma Quase

Uma substância de sombra     um aroma quase
um desenho frágil
o espaço branco
cintilações de água sobre o muro
intensidade nua

a semelhança livre
do rosto e do lugar

Sinuosa e nua
sobre o vazio     terra latente

Marca breve à superfície     para não escrever
imagem do contacto
entre o branco e o negro
a semelhança
de nascer
de não nascer

Um seio verde
no fundo
do quarto
e tudo o que circula
os desenhos vermelhos
os insectos as nuvens

Entras no dia branco
na distância viva

Dedos incandescentes
sobre a laranja
e a lâmpada

Silenciosa intensidade
de um obscuro sabor

Rumor de uma corola
aberta pelo silêncio

Deslumbramento     Espaço

Onde deixaste a noite
a noite
com a sua noite
e as suas dunas brancas

Sol dos lagos no rosto
sol cimo suave

Linha silenciosa
para o intangível
centro
de horizontal brancura

Tu és o centro móvel
na noite da nudez
folha verde
de luz

O traço que desenhas
é o sussurro branco
da semelhança liberta

Semelhança     uma folha move-se
para um centro
de coexistência pura

A semelhança de um rosto é a diferença de um arco
A semelhança é uma surpresa culminando
na imagem
Aliança translúcida de alianças
semelhança de semelhanças
A semelhança da nostalgia e da presença
A semelhança do desejo e da inocência
A semelhança é uma viagem na ausência
o centro na distância
Nada é tão novo como a semelhança na sua ínfima diferença
A semelhança é o gérmen de si mesma e da presença da origem
No silêncio da imagem o teu rosto é a semelhança da Presença
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O Que Nos Diz a Imagem? Diz-Nos o Que É E Não o Diz

O que nos diz a imagem? Diz-nos o que é e não o diz.
Porque não é uma palavra. Antes um silêncio,
uma ausência, um vazio.
O seu sentido é uma promessa de sentido
ou o silêncio do sentido que respira e transparece
Ausência na presença plena
Cintilação silenciosa e fixa de um olhar sem fim
Um olhar vazio de tudo — que vê e não vê
e só vê porque é cego.
Tudo nele é visão, mas a visão vê tudo.

Um signo que aponta a uma infinidade de sentidos
ou o sentido é infinito. Um sentido impossível.
Este é o aspecto incessante do signo,
o seu vazio e a sua vida,
todos os signos de um signo
de um incessante signo.

O olhar vazio é visão de um puro espaço
onde tudo é exterior e ao mesmo tempo íntimo
Todo o interior é nele o puro olhar do exterior
e a profundidade infinita do olhar silencioso.

Tudo o que ele vê a partir do puro espaço
o horizonte que está em si e à sua frente
e vem de dentro, do íntimo exterior,
e é todo ele olhar em si
a pura exterioridade de si mesmo
que ao abrir-se fecha-se e para dentro se abre.

Mas este olhar vazio
é ainda mais exterior do que qualquer olhar
porque reflecte à superfície todo o exterior
o puro exterior a partir do qual nos olha
e em si mesmo vê
numa esfera
em que a visão é presença fascinante
do que não vemos,
a ausência do que ela vê
— o tudo e o nada da visão,
a vacuidade do próprio acto de ver.

Ela olha… Não. Não olha. Vê.
Não vê. Olha.
Olha o vazio, o vazio do centro.
E ela vê.
Mas quando vê
deixa de ver: olha
apenas.
Porque a visão suspende-se
ante o vazio do centro.

Ela não pode ver-nos. Ela olha-nos.
Olhemo-la.
Olhemos os seus olhos, o seu olhar.
Não vemos, olhamos apenas.
Estes olhos não se vêem.
Como não se vê a luz vazia,
a luz do imo,
o fundo sem fundo do próprio fundo.

Mas podemos olhá-la
porque olhar é deixar-se fascinar
e o que olhamos é a fascinação do vazio
sem fundo algum.

Mas o seu rosto reflecte a harmonia
do seu fundo sem fundo com a superfície pura.
O seu rosto fala do silêncio
que é o silêncio da sua beleza.
E a discreta plenitude deste rosto
revela-nos
que o puro espaço inacessível
é também a pura presença da terra,
a misteriosa transparência de cada ser,
a plenitude de uma semelhança.

Este rosto reconhece-nos
porque é a própria semelhança.
Esta semelhança reúne-nos,
reconcilia-nos connosco
é o nosso coração reencontrado.

Este rosto aceita-nos no seu silêncio
na sua distância próxima.
É um sorriso de uma serena plenitude,
um sorriso de aceitação e amor,
uma amizade no mistério do ser.

Este rosto atrai-nos para uma distância
uma longínqua proximidade
ponderação da nossa transparência
porque nela nós estamos presentes
através de uma contemplação
que recusa olhar o que não deve ser visto
que atravessa o visível para ver.

Ela vê o que se oculta no visível,
o único, o ser,
o centro onde não estamos
mas que talvez em nós amadureça
que o seu olhar faz amadurecer.

Não a vemos. Olhamo-la.
E é todo o seu corpo que nos olha
que não cessa de nos olhar.
Vemos o seu corpo.
Mas é antes o seu corpo que nos olha.

O seu corpo é palavra e silêncio da palavra.

A palavra-silêncio do seu corpo
entra no íntimo de nós
onde recolhe o sonho de viver
que só pode revelar-se numa infinita
contemplação
que não pode deter-se em nenhum sentido
porque é o incessante, o interminável sim do amor.
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Apontamentos Para Um Estudo Sobre Fernando Echevarría

APONTAMENTOS PARA UM ESTUDO
SOBRE FERNANDO ECHEVARRÍA
Elogio da linha rítmica luminosa: verso.
Reaparecido o melodioso pássaro do número.
Visibilidade do fundo à superfície.
Torre lúcida de força harmoniosa.
A geometria com a música.
O conceito repentino, concêntrico (o timbre).
A estrutura — respiração.
A música que não flui sem as pedras das palavras.
A densidade clara, forte: o ritmo da energia, do intacto.
Pulsação e perfil da pedra.
rosa
O exacto esplendor — arrasa, fulgura: ————.
terramoto
O centro em cada palavra Cai arrasante.
Com coração
de grande terra sonora
A pedra-espelho: retina         rua, dentro         fora.
O infinito condicional. Sintaxe do incondicional.
Irrupção da rosa no seu rigor inicial.

A (im)pressão do compacto
a gestação
apresentando-se     irrupção
re-presentando-se     de um facto
e a fulguração-florescência
de forma virgem e completa:
o poema-rosa

A exactidão musical e plástica da dicção tensa flexibilidade do inflexível número

O viço e o vigor do vocábulo na dicção de pedra musical (branca-torre)

A pureza forte da palavra
palavra material
branca incandescência
de ritmo verde

Um novo canto e um novo en-canto:
a revolução entendida ao mesmo tempo como
um movimento de um astro
e uma insurreição da palavra no re-novo da revolução
A tradição
deixa de ser a traição de um esquecimento
e desdizendo-se     retorna repentinamente
ao que gera a sua ficção.

O tempo do poema echevarriano é o tempo que um astro gasta em percorrer a sua órbita ou a girar em torno do seu eixo.
Amadurecimento. Gravitação.
O poema é uma rosa, uma torre, um astro
O poema é simultaneamente lento e repentino
com uma profunda ressonância
cuja profundidade
se resolve totalmente na superfície material verbal do poema

espessa e luminosa
subtil e grave
concêntrica
redonda:

Amadurece. Procura
sumos e pesos por dentro,
que cumulem a estrutura
de ti. Que te espera um centro
de escura gravitação
em terra. Com coração
de grande terra sonora.
Cai arrasante. Que o fruto
destruirá o tempo à hora
do golpe em que já te escuto.
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Diante da Folha Branca…

Diante da folha branca. A tentação de escrever. Porquê? Que tenho eu para dizer? Nada. Talvez nada. Desisto. Não. O papel branco branco. Esta palavra «branco» é a primeira palavra? É o branco que me tenta antes de escrever. De súbito — como? o que se passa? — a primeira palavra, a primeira frase surgiu — irrompeu? O branco, a página? O branco da página? Uma página está cheia de caminhos. E que caminho escolher que caminho quando não se sabe qual o caminho ou se um caminho nos leva a algum lado? Mas escolho eu algum caminho? Faço eu acaso esta pergunta quando estou diante do papel? O que se passa ou não se passa ou vai passar-se o que está já a passar-se ainda antes de o texto principiar não é um problema a resolver (se fosse um problema, possivelmente nunca o resolveria, nunca poderia — começar a — escrever). Algo obscuro, de súbito, uma palavra, uma frase; um verso — explodiu? Eis que escrevo. Explodiu, disse, é talvez um exagero. Seria magnífico se o texto principiasse por essa bela metáfora: explosão. Que o texto, todo ele, fosse uma explosão. Por vezes, sim, por momentos e nem sempre logo no início… as palavras intensificam-se, tornam-se incandescentes? fluviais? a aridez do percurso volve-se na fluência de um insondável rio. Mas quantas vezes, que dificuldade! Como que escrevo para respirar fora dos caminhos conhecidos, fora das barreiras em que nos asfixiam(os). São os caminhos cheios de sentidos que se nos querem impor, que se nos impõem. Começo então a escrever. É uma aventura talvez sem sentido, vou talvez perder-me — como evitar o absurdo? Mas é preciso correr o risco do absurdo, é necessário que eu me perca. Trata-se de uma condição do acto de escrever, poderei talvez atingir alguma dimensão desconhecida. É indispensável não evitar tal risco, não temer perder-me ou, antes, temer e não temer perder-me. É necessário, pois, perder-me no sem-sentido, mas este não é o sem-sentido dos sentidos já não sentidos, por desgaste ou por demais sentidos na sua violência asfixiante. É uma busca obscura, incerta, cega, em que tento romper, abrir um caminho fora dos caminhos conhecidos — um caminho incerto entre mil caminhos ou um caminho que não o será talvez. Um caminho em que tudo é incerto porque os caminhos na página não estão traçados de antemão. E, no entanto, no incerto percurso há uma direcção obscura, indubitável. Uma palavra surge: espaço ou árvore e outras, tronco, insecto, pedra, palavras que traduzem um impulso e um desejo, um desejo que cresce e é já um ritmo, uma secreta vibração da língua, uma pulsação. Como que um oculto íman os atrai.

Que dizem estas palavras?
Que diz esta árvore
que não é exactamente a árvore que nós vemos
mas que na página respira
porque a palavra contém ar
e nela vibra o rumor do vento
como a árvore real que nós vemos lá fora?
As palavras dizem algo inicial
nascem da sede e do desejo
dizem e são a sede e o desejo
a pedra que era pedra e só pedra
é já mais do que pedra o próprio corpo
a dureza do corpo intacto
e de súbito a pedra de água
um novo caminho nasce, um novo espaço
a magia de uma imagem
e outra imagem
iluminam a página

Porque certas palavras se repetem no caminho
pedra folha insecto tronco
pedra pedra a pedra do poema
uma palavra uma pedra
as sílabas de um corpo
um sinal opaco
intenso
nítido
exacto
que nos diz o quê?

a pedra pulsa
fixa a pulsação
pedra palavra intensa
inexplicável
pura

O tronco é uma intensidade bronca
e branca

um trovão horizontal
a energia da língua vertical
da árvore
do corpo
a palavra mais forte sobre a página
a que implanta o intacto
a imagem mais visível do opaco
a sua identidade
inexplorável

O insecto o imperceptível quase
mínima forma
táctil
de um olhar
em que o ínfimo palpita
ao rés da terra ardente

Todo o poema é um tecido de relações
um corpo de palavras
e nesse corpo arde o desejo do corpo

O poema retorna sempre ao desejo inicial
insaciavelmente branco
incandescente
as palavras surgem renovadas
como se o poema as dissesse pela primeira vez
numa outra língua
mas é a mesma língua
de todos
um pouco mais nua
ardente
e branca
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