Pablo Neruda

Pablo Neruda

Pablo Neruda foi um poeta chileno, bem como um dos mais importantes poetas da língua castelhana do século XX e cônsul do Chile na Espanha e no México.

1904-07-12 Parral, Chile
1973-09-23 Santiago, Chile
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Canto XIII - Coral de Ano-Novo para a Pátria em trevas

I
Saudação (1949)

De arames oxidados pela água salobre?
É Pisagua também teu rosto agora?
Quem te fez mal, como atravessaram
com um punhal o teu mel despido?

Antes de ninguém, para eles minha saudação,
para os homens, para o plinto de dores,
para as mulheres, ramos de mañio,
para as crianças, escolas transparentes,
que sobre as areias de Pisagua
foram a pátria perseguida, foram
toda a honra da terra que amo.

Será a honra sagrada de amanhã
ter sido arrojado a tuas areias,
Pisagua: ter sido de repente
recolhido à noite do terror
por ordem de um traidor envilecido
e ter chegado a teu calcário inferno
para defender a dignidade do homem.




II Os homens de Pisagua
Não esquecerei as tuas costas mortas onde
do mar hostil a suja dentada
ataca as paredes do tormento
e a pique se levantam os baluartes
dos pelados cerros infernais:
não esquecerei como olhais as águas,
para o mundo que esquece os vossos rostos,
não esquecerei quando de olhos cheios
de interrogante luz, voltais
o rosto às terras pálidas do Chile
dominadas por lobos e ladrões.


Sei como vos lançaram a comida,
como a cães sarnentos, no chão,
até que fizestes de pequenas latas
vazias os vossos pratos:
sei como vos lançaram para dormir
e como em fila recebestes,
carrancudos e valentes,
os imundos feijões
que tantas vezes às areias lançastes.

Sei como, quando recebíeis
roupa, alimentos que de toda
a extensão da pátria se juntaram,
sentistes com orgulho
que talvez, que talvez não estáveis sós.

Valentes, temperados compatriotas
que dais um novo sentido à terra:
fostes os escolhidos na caçada,
para que por vós todo o povo
sofresse em desterrados areais.

E escolheram inferno examinando
o mapa, até que acharam
este salobre cárcere, estes muros
de solidão, de surpreendedora
angústia, para que golpeareis a cabeça
sob os pés do ínfimo tirano.


Mas não acharam sua própria matéria:
não sois feitos de esterco como o pútrido,
vermiforme traidor: mentiram
seus informes, acharam
a firmeza metálica do povo,
o coração do cobre e seu silêncio.


É o metal que fundará a pátria
quando o vento do povo areento
expulsar o capitão da imundície.

Firmes, firmes irmãos,
firmes quando em caminhões, agredidos
à noite nas cabanas, empurrados,
amarrados os braços com arame,
sem despertar, apenas surpreendidos
e atropelados, fostes para Pisagua,
levados por armados carcereiros.


Depois voltaram eles
e encheram caminhões com famílias
desamparadas, batendo nas crianças.

E um pranto de filhos doces aparece
ainda na noite do deserto, um pranto
de milhares de bocas infantis,
como um coro que busca o duro vento
para que escutemos, para que não nos esqueçamos.




III
Os heróis

Félix Morales, Ángel Vcas,
assassinados em Pisagua,
feliz ano-novo, irmãos,
sob a dura terra que amastes,
que defendestes.
Hoje estais
sob as salinas que rangem
dizendo os vossos nomes puros,
sob as rosas estendidas
do salitre, sob a areia
cruel do deserto ilimitado.


Feliz ano-novo, irmãos
meus, quanto amor
me ensinastes, quanto
domínio sobre a ternura
abarcastes na morte!

Sois como as ilhas que nascem
de repente no meio do oceano,
sustentadas pelo espaço
e pela firmeza marinha.


Aprendi o mundo de vós:
a pureza, o pão infinito.

Me mostrastes a vida, a área
do sal, a cruz dos pobres.

Cruzei as vidas do deserto
como um barco num mar escuro
e me mostráveis a meu lado
os trabalhos do homem, o solo,
a casa andrajosa, o silvo
da miséria nas planuras.


Félix Morales, te recordo
pintando um retrato alto, fino
esbelto e jovem como uma nova
algarobeira, nas extensões
sedentas do pampa.


Tuas melenas bravias batiam
em teu rosto pálido, pintavas
o retrato de um demagogo
para as próximas eleições.


Te recordo dando a vida
em tua pintura, encarapitado
na escada, resumindo
toda a sua doce juventude.


Ias fazendo o sorriso
de teu verdugo na tela,
agregando branco, medindo,
acrescentando luz na boca
que ordenou depois tua agonia.


Ángel, Ángel, Ángel Veas,
operário do pampa, puro
como o metal desenterrado,
já te assassinaram, já estás
onde quiseram que estivesses
os amos do chão do Chile:
debaixo das pedras devoradoras
que com as tuas mãos tantas vezes
levantaste para a grandeza.


Nada mais puro que a tua vida.


Só as pálpebras dos ares.


Só as águas mananciais.


Só o metal inacessível.


Levarei pela vida inteira
a honra de ter estreitado
tua nobre mão combatente.


Eras tranqüilo, eras madeira
educada no sofrimento
até ser ferramenta pura.

Te recordo quando se honrava
a intendência de Iquique contigo,
trabalhador, asceta, irmão.


Faltava pão, farinha.
Então
levantavas antes da aurora
e com as tuas mãos repartias
o pão para todos.
Nunca
te vi tão grande, eras o pão,
eras o pão do povo, aberto
com o teu coração na terra.


E quando tarde na jornada
voltavas carregando o volume
do dia de luta terrível,
sorrias como a farinha,
entravas em tua paz de pão,
e te repartias de novo,
até que o sonho reunia
teu debulhado coração.




IV
González Videla

Quem foi? Quem é? onde estou, me perguntam,
em outras terras onde vou errante.

No Chile não perguntam, os punhos contra o vento,
os olbos nas minas se dirigcm a um ponto,
a um vicíoso traidor que com eles chorava
quando pediu seus votos para trepar ao trono.

Viram-no estes homens de Pisagua, os bravos
titãs do carvão: derramava as lágrimas,
arrancava os dentes prometendo,
abraçava e beijava as crianças que agora
limpam com areia a marca de sua pústula.

Fm minha cidade, em minha terra o conhecemos.
Dorme
o lavrador pensando quando suas duras mãos
poderão cercar seu pescoço de cão mentiroso,
e o mineiro na sombra de sua cova intranqüila
estira o pé sonhando que esmagou com a sola
este piolho maligno, degradado insaciável.


Sabe quem é o que fala atrás duma cortina
de baionetas, ou atrás de animais de feira,
ou atrás dos novos mercadores,
mas nunca atrás do povo que o procura
para falar uma hora com ele, sua última hora.


A meu povo arrancou a esperança, sorrindo,
vendeu-a nas trevas a seu melhor licitador,
e em vez de casas frescas e liberdades, feriram-no,
espancaram-no na garganta da mina,
lhe decretaram o salário atrás duma coronha,
enquanto uma tertúlia governava dançando
com dentes afiados de jacarés noturnos.




V
Eu não sofri

Mas não sofreste tu? Eu não sofri.
Eu sofro
só os sofrimentos do meu povo.
Eu vivo
por dentro, por dentro de minha pátria, célula
de seu infinito e abrasado sangue.

Não tenho tempo para as minhas dores.

Nada me faz sofrer além destas vidas
que a mim deram sua confiança pura,
e que um traidor fez rolar para o fundo
do buraco morto, de onde
é preciso de novo erguer-se a rosa.


Quando o verdugo pressionou os juízes
para que condenassem
o meu coração, meu enxame decidido,
o povo abriu seu labirinto imenso,
o porão em que dormem os seus amores,
e lá me sustentaram, vigiando
até a entrada da luz e do ar.

Me disseram: “Somos teus credores,
és o que há de pôr a marca fria
sobre os sujos nomes do perverso”.

E só sofri de não ter sofrido.

Só de não ter percorrido os escuros
cárceres de meu irmão e de meu irmão,
com toda a minha paixão como uma ferida,
e cada passo falso a mim rolava.

cada golpe nas tuas costas me machucava,
cada gota de sangue do martírio
resvalou até meu canto que sangrava.




VI
Neste tempo

Feliz ano.
.
.
Hoje que tens
minha terra a teus dois lados, és feliz, irmão.

Eu sou errante filho do que amo.

Responde-me, pensa que estou contigo
a perguntar-te, pensa que sou o vento de janeiro,
vento puelche, vento velho das montanhas
que quando abres a porta te visita
sem entrar, ventilando suas rápidas perguntas.

Dize-me, entraste por um campo de trigo ou de cevada,
estão dourados? Fala-me de um dia de cerejas.

Longe do Chile penso num dia redondo,
cor de amora, transparente, de açúcar em cachos,
e de grãos espessos e azuis que gotejam
em minha boca as suas taças carregadas de delícia.

Dize-me, mordeste hoje a anca pura
de um pêssego, e enchendo-te de imortal ambrosia,
até que também foste fonte da terra,
fruto c fruto entregues ao esplendor do mundo?



VII
Antes me falaram

Por estas mesmas terras forasteiras andei
eu outro tempo: o nome de minha pátria brilhava
como os constelados segredos de seu céu.


O perseguido de todas as latitudes, cego,
oprimido pela ameaça e pela ignomínia,
me tocava as mãos, me dizia “chileno”
com uma voz manchada pela esperança.
Então
a tua voz tinha o eco de um hino, eram pequenas
as tuas mãos arenosas, pátria, mas cobriram
mais de uma ferida, resgataram
mais de uma primavera desolada.

Levas guardada toda essa esperança,
reprimida em tua paz, sob a terra,
vasta semente para todo homem,
ressurreição segura da estrela.




VIII
As vozes do Chile

Antes a voz do Chile foi metálica
voz da liberdade, de vento e prata,
antes ressoou nas alturas
do planeta recém-cicatrizado,
de nossa América agredida
por matagais e centauros.

Até à neve intacta subiu, no desvelo,
subiu o teu coro de folhas honoráveis,
o canto de águas livres de teus rios,
a majestade azul de teu decoro.

Era Isidoro Errázuriz vertendo
sua combatente estrela cristalina,
sobre cidades obscuras e amarradas,
era Bilbao com sua cara
de pequeno planeta tumultuoso,
foi Vicuña Mackenna transportando
sua inumerável e germinal folhagem
prenhe de indícios e sementes
por outras cidades em que a janela
foi fechada á luz.
Eles entraram
e acenderam a lâmpada na noite,
e no amargo do dia de outras cidades
foram a luz mais alta da neve.




IX
Os mentirosos

Hoje se chamam Gajardo, Manuel Trucco,
Hernán Santa Cruz, Enrique Berstein,
Germán Vergara, os que - pagamento adiantado -
dizem falar, ó Pátria, em teu sagrado
nome e pretendem defender-te afundando
a tua herança de leão na imundície.

Anões amassados como pílulas
na botica do traidor, ratazanas
do pressuposto, mínimos
mentirosos, esporeadores
de nossa força, pobres
mercenários de mãos estendidas
e línguas de coelhos caluniadores.

Não são minha pátria, eu o declaro
a quem me queira ouvir por estas terras,
não são o homem grande do salitre,
não são o sal do povo transparente,
não são as lentas mãos que constroem
o monumento da agricultura,
não são, não existem, mentem e arrazoam
para continuar, sem existir, cobrando.




X
Serão nomeados

Enquanto escrevo minha mão esquerda me reprova.

Me diz: por que os nomeias, que são, que valem?
Por que não os deixaste em seu anônimo lodo
de inverno, nesse lodo em que urinam os cavalos?
E minha mão direita lhe responde: “Nasci
para bater nas portas, para brandir os golpes,
para acender as últimas retiradas sombras
nas quais se alimenta a aranha venenosa”.

Serão nomeados.
Não me entregaste, pátria,
o doce privilégio de nomear-te
apenas em teus alhelies e tua espuma,
não me deste palavras, pátria, para chamar-te
apenas com nomes de ouro, de pólen, de fragrância,
para esparzir semeando as gotas de orvalho
que caem de tua negra cabeleira imperiosa:
me deste com o leite e a carne as sílabas
que nomearão também os pálidos vermes
que viajam no teu ventre,
os que acossam o teu sangue, saqueando-te a vida.




XI
Os vermes do bosque

Algo do bosque antigo caiu, foi a tormenta
talvez, purificando crescimentos e camadas,
e nos troncos caídos fermentaram os fungos,
as lesmas cruzaram seus fios nauseabundos,
e a madeira morta que caiu das alturas
encheu-se de buracos e de larvas espantosas.

Assim está o teu costado, pátria, a desditada
governação de insetos que povoam tuas feridas,
os grossos traficantes que mastigam arame,
os que desde palácio negociam com o ouro,
os vermes que juntam micros e pescarias,
os que te roem algo cobertos pelo manto
do traidor que dança sua zamba excitada,
o jornalista que encarcera seus companheiros,
o sujo delator que faz governo,
o pedante que se apodera duma revista pedante
com o ouro roubado dos yaganes,
o almirante tonto como um tomate, o gringo
que cospe a seus vassalos uma bolsa com dólares



XII
Pátria, querem te repartir

“Chamavam-no de chileno”, dizem de mim estas larvas.

Querem tirar-me a pátria sob os pés, desejam
corrar-te para eles como um baralho sujo
e repartir-te entre eles como uma carne gordurosa.

Não os amo.
Crêem eles que já te têm morta,
esquartejada, e na orgia de seus desígnios sujos
te gastam como donos.
Não os amo.
A mim deixa-me
amar-te em terra e povo, deixa-me perseguir
o meu sonho em tuas fronteiras marinhas e nevadas,
deixa-me recolher todo o perfume amargo
teu que numa taça levo pelos caminhos,
mas não posso estar com eles, não me peças
quando sacudires os ombros e tombem no chão
com suas germinações de animais apodrecidos,
não me peças que acredite que sejam teus filhos.
É outra
a madeira sagrada de meu povo.


Amanhã
serás na estreitem da tua embarcação cingida,
entre as duas marés de oceano e de neve,
a mais amada, o pão, a terra, o filho.

De dia o nobre rito do tempo libertado,
de noite a entidade estrelada do céu.




XIII
Recebem ordens contra o Chile

Mas atrás de todos eles há que buscar, há algo
atrás dos traidores e dos ratos que roem,
há um império que põe a mesa,
que serve a comida e as balas.

Querem fazer de ti o que logram na Grécia.

Os señoritos gregos no banquete, c balas
ao povo nas montanhas: há que extirpar o vôo
da nova Vitória de Samotrácia, há que enforcar,
matar, perder, mergulhar o punhal assassino
empunhado em Nova York, há que romper com fogo
o orgulho do homem que assomava
por todas as partes como se nascesse
da terra regada pelo sangue.

Há que armar Chianga e o ínfimo Videla,
há que dar-lhes dinheiro para cárceres, asas
para que bombardeiem compatriotas, há que dar-lhes
um pão velho, alguns dólares, fazem eles o resto,
eles mentem, corrompem, dançam sobre os mortos
e suas esposas reluzem os visões mais caros.

Não importa a agonia do povo, deste martírio
necessitam os amos donos do cobre: há fatos:
os generais deixam o exército e servem
de assistentes no staff de Chuquicamata,
e no salitre o general “chileno”
ordena com sua espada quanto devem pedir
como aumento de salário os filhos do pampa.

Assim ordenam de cima, da bolsa com dólares,
assim recebe a ordem o anão traidor,
assim os generais se fazem de polícias,
assim apodrece o tronco da árvore da pátria.




XIV
Recordo o mar

Chileno, tens ido ao mar neste tempo?
Vai em meu nome, molha tuas mãos e levanta-as
e eu de outras terras adorarei essas gotas
que caem da água infinita em teu rosto.

Eu conheço, vivi toda a minha costa,
o grosso mar do norte, dos páramos, até
o peso tempestuoso da espuma nas ilhas.

Recordo o mar, as costas gretadas e férreas
de Coquimbo, as águas altaneiras de Tralca,
as solitárias ondas do sul, que me criaram.

Recordo em Puerto Montt e nas ilhas, à noite,
ao voltar pela praia, a embarcação que espera,
e nossos pés deixavam em suas marcas o fogo,
as chamas misteriosas de um deus fosforescente.


Cada pisada era um regueiro de fósforo.

Íamos escrevendo com estrelas a terra.

E no mar resvalando a barca sacudia
uma ramagem de fogo marinho, de vaga-lumes,
uma onda inumerável de olhos que despertavam
uma vez c tornavam a dormir em seu abismo.




XV
Não há perdão

Eu quero terra, fogo, pão, açúcar, farinha,
mar, livros, pátria para todos, por isso
ando errante: os juízes do traidor me perseguem
e seus turiferários tratam, como os micos
amestrados, de encharcar minha lembrança.

Fui eu com ele, com esse que preside, à boca
da mina, ao deserto da aurora esquecida,
eu fui com ele e disse a meus pobres irmãos:
“Não guardareis os fios da roupa esfarrapada,
não tereis este dia sem pão, sereis tratados
como se fôsseis filhos da pátria”.
“Agora
vamos repartir a beleza, e os olhos
das mulheres não chorarão por seus filhos.

E quando em vez de amor repartido, na noite
à fome e ao martírio lançaram a esse mesmo,
a esse que o escutou, a esse que sua força
e sua ternura de árvore poderosa entregara,
então eu não estive com o pequeno sátrapa,
mas com aquele homem sem nome, com meu povo.

Eu quem a minha pátria para os meus, quero
a luz igual sobre a cabeleira
de minha pátria acesa,
quero o amor do dia e do arado,
quero apagar a linha que com ódio
fazem para apartar o pão do povo,
e ao que desviou a linha da pátria
até entregá-la como carcereiro,
atada, aos que pagam para feri-la,
eu não vou cantá-lo nem calá-lo,
vou deixar seu número e seu nome
cravado na parede da desonra.




XVI
Tu lutarás

Este ano-novo, compatriota, é teu.

Nasceu mais de ti do que do tempo, escolhe
o melhor de tua vida e o entrega ao combate.

Este ano que caiu como morto em seu túmulo
não pode repousar com amor e com medo.

Este ano morto é ano de dores que acusam.

E quando suas raízes amargas, na hora
da festa, à noite, se desprenderem e caírem
e subir outro cristal ignorado até o vazio
de um ano que a tua vida encherá pouco a pouco,
dá-lhe a dignidade que requer a minha pátria,
a tua, esta estreiteza de vulcões e vinhos.

Eu não sou cidadão de meu país: me escrevem
que o clown indecoroso que governa apagou
com outros milhares de nomes o meu
das listas que eram as leis da República.

Meu nome está apagado para que eu não exista,
para que o torvo abutre da masmorra vote
e votem os bestiais encarregados que dão
pancadas e o tormento nos porões
do governo, para que votem bem garantidos
os mordomos, caporais, sócios
do negociante que entregou a Pátria.

Eu estou errante, vivo a angústia de estar longe
do preso e da flor, do homem e da terra,
porém tu lutarás para apagar a mancha
de esterco sobre o mapa, tu lutarás sem dúvida
para que a vergonha deste tempo termine
e se abram as prisões do povo e se levantem
as asas da vitória traída.




XVII
Feliz ano-novo para minha pátria em trevas

Feliz ano este ano, para ti, para todos
os homens, e as terras, Araucania amada.

Entre ti e minha existência há esta noite nova
que nos separa, e bosques e rios e caminhos.

Porém até a ti, pequena pátria minha,
como um cavalo escuro meu coração galopa:
entro por seus desertos de pura geografia,
passo pelos vales verdes onde a uva acumula
seus verdes álcoois, o mar de seus cachos.

Entro em tuas aldeias de jardim fechado,
brancas como camélias, no acre
odor de tuas adegas, e penetro
como um madeiro a água dos rios que tremem
trepidando e cantando com lábios transbordados.


Recordo, nos caminhos, talvez neste tempo,
ou melhor no outono, sobre as casas deixam
as espigas douradas do milho secando,
e quantas vezes fui como um menino extasiado
a ver o ouro nos retos dos pobres.


Te abraço, devo agora
retornar a meu lugar escondido.
Te abraço
sem conhecer-te: dize-me quem és, reconheces
a minha voz no coro do que está nascendo?
Entre todas as coisas que te rodeiam, ouves
minha voz, não sentes como te cerca meu acento
emanado como água natural da terra?

Sou eu que abraço toda a superfície doce,
a cintura florida de minha pátria e te chamo
para que falemos quando se apague a alegria
e entregar-te esta hora como uma flor fechada.

Feliz ano-novo para minha pátria em trevas.

Vamos juntos, está o mundo coroado de trigo,
o alto céu corre deslizando e rompendo
suas altas pedras puras contra a noite: apenas
se encheu a nova taça com um minuto
que há de juntar-se ao rio do tempo que nos leva.

Este tempo, esta taça, esta terra são teus:
conquista-os e escuta como nasce a aurora.

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