Manoel de Barros é um poeta sofisticado e complexo, dono de uma obra que, bem lida, mostra-se muito distante do rótulo intuitivista de “Jeca Tatu do Pantanal” que lhe tentaram impingir. E é só por ser assim, sofisticado e complexo, que ele consegue alcançar um grau tão elevado de limpeza e simplicidade em seus versos, coisa não raras vezes confundida com a singeleza do vulgarmente fácil.
A despeito do sucesso que o tornaria nacionalmente conhecido somente após os 60 anos, ele próprio recusava as classificações redutoras que restringiam a universalidade de sua dicção: “eu não sou poeta ecológico, nem sou poeta do Pantanal”, dizia sem disfarçar seu incômodo com o rebaixamento folclórico. Leitor precoce de Antônio Vieira, Flaubert, Paul Valéry, Rimbaud e Wittgenstein, frequentador da Bienal de São Paulo e de museus em Nova York, admirador declarado de Monet, Van Gogh e Picasso, Manoel de Barros erigiu uma obra de fatura nitidamente cosmopolita. Entretanto, certa crítica literária rapidamente cuidou de apagar esse traço em prol de uma assimilação de sua voz a um topos naïf e regionalista, um movimento até razoavelmente compreensível pelas dificuldades em se lidar com diversos elementos singulares de sua poética. Enumero aqui rapidamente alguns que penso merecer destaque e pesquisa aprofundada: (1) a busca de uma expressão adâmica tanto no primitivismo rupestre como na peculiaridade gerativa da aquisição das competências linguísticas pela gramática infantil (Chomsky); (2) a deliberada injeção de sentidos antropomórficos na natureza, sobretudo em paisagens e biomas nos quais a força da água e da vegetação estimula uma melancolia diante do apequenamento da obra humana prestes a ser engolida pelo ambiente (a tapera devorada pelo mato e pelas cheias); (3) o silêncio e o isolamento no deserto social formado pela rarefação demográfica do mundo rural brasileiro da primeira metade do século XX (o ermo como lugar de decomposição e abandono: o cisco, o lixo, a lata enferrujada e a conversa com as coisas e os bichos); (4) o caráter extraordinariamente lúdico da arenga dos loucos do campo, cuja pureza ingênua alcança, inclusive, a comunicação com os pássaros (Bernardo da Mata, o bocó que é quase árvore); (5) a instigante paleta de metáforas, metonímias e analogias que os seus recursos de zoomorfização acionam (suas celebérrimas referências à lesma, à rã, ao cágado e aos pronomes do tuiuiú [tu/you/you], entre outras); (6) um acordo sempre tenso e muitíssimo negociado entre os registros da tradição erudita, as falas indígenas e as gambiarras de ouro do povo-inventalínguas (sem fugir dos inevitáveis paralelos com Guimarães Rosa, destaco a frequência de gauchismos no seu léxico, seguramente oriundos da migração sul-rio-grandense para o Mato Grosso, que remonta ao século XVIII); e ainda (7) uma perspectiva finamente irônica e analítica em relação às estruturas predicativas e sintáticas do idioma, a sua incessante busca daquele efeito de “desencontro da palavra com a ideia” (o “alicate cremoso” e a censura ao pragmatismo promovida por seus “inutensílios”).
Em pleno labirinto de espelhos zooantropomórficos, a perplexidade instaurada por esse desencontro entre a palavra e a ideia é conquistada graças a uma cautelosa (des)articulação entre termos e coisas. No livrinho de poemas que publiquei em 2005, deixei no seu prefácio a seguinte pista sobre isso que talvez seja o grande estratagema da poesia manoelina: “nessa época tão cheia de amores pela ciência, nem seria de todo estranho se alguma teoria neurológica procurasse explicar a poesia de Manoel de Barros segundo os impulsos de uma machine à émouvoir regulada pelas incongruências que provocam o pico N400 em nosso cérebro.”.
Explicação: domínio da ciência com o qual estão comprometidas tanto a crítica literária como a linguística. Explicação: ato que procura tornar inteligível o efeito estético de um poema, procedimento este regularmente fracassado diante de obras extraordinárias.
Mas como analisar e fruir não são coisas que se excluem, a poesia de Manoel de Barros segue à espera de mais leitores e de novas abordagens que se ponham à altura dessa sua instigante originalidade, forjada por um amálgama raro entre linguagem, espacialidade e emoções.