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O véu das lágrimas não cega. Vejo, a chorar, O que essa música me entrega – A mãe que eu tinha, o antigo lar, A criança que fui, O horror do tempo, porque flui, O horror da vida, porque é só matar! Vejo e adormeço, Num torpor em que me esqueço Que existo inda neste mundo que há... Estou vendo minha mãe tocar. E essas mãos brancas e pequenas, Cuja carícia nunca mais me afagará –, Tocam ao piano, cuidadosas e serenas, (Meu Deus!) Un soir à Lima. Ah, vejo tudo claro! Estou outra vez ali. Afasto do luar exterior e raro Os olhos com que o vi. Mas quê? Divago e a música acabou... Divago como sempre divaguei Sem ter na alma certeza de quem sou, Nem verdadeira fé ou firme lei Divago, crio eternidades minhas Num ópio de memória e de abandono. Entronizo fantásticas rainhas Sem para elas ter o trono. Sonho porque me banho No rio irreal da música evocada. Minha alma é uma criança esfarrapada Que dorme num recanto obscuro. De meu só tenho, Na realidade certa e acordada, Os trapos da minha alma abandonada, E a cabeça que sonha contra o muro. Mas, mãe não haverá Um Deus que me não torne tudo vão, Um outro mundo em que isso agora está? Divago ainda: tudo é ilusão. Un soir à Lima Quebra-te, coração... 17/09/1935
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Fernando Pessoa
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