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FAUSTO (EXTRACTOS) ACTO I Quero fugir ao mistério Para onde fugirei? Ele é a vida e a morte Ó Dor, aonde me irei? O mistério de tudo Aproxima-se tanto do meu ser, Chega aos olhos meus d'alma tão perto, Que me dissolvo em trevas e universo... Em trevas me apavoro escuramente. O perene mistério, que atravessa Como um suspiro céus e corações... O mistério ruiu sobre a minha alma E soterrou-a... Morro consciente! Acorda, eis o mistério ao pé de ti! E assim pensando riu amargamente, Dentro em mim riu como se chorasse! Ah, tudo é símbolo e analogia! O vento que passa, a noite que esfria São outra coisa que a noite e o vento – Sombras de vida e de pensamento. Tudo que vemos é outra coisa. A maré vasta, a maré ansiosa, É o eco de outra maré que está Onde é real o mundo que há. Tudo que temos é esquecimento. A noite fria, o passar do vento São sombras de mãos cujos gestos são A ilusão mãe desta ilusão. 09/11/1932 Tudo transcende tudo E é mais real e menos do que é. (Fausto no seu laboratório) FAUSTO (só): Ondas de aspiração que vãs morreis Sem mesmo o coração e alma atingir Do vosso sentimento; ondas de pranto, Não vos posso chorar e em mim subis, Maré imensa rumorosa e surda, Para morrer na praia do limite Que a vida impõe ao Ser; ondas saudosas D'algum mar alto aonde a praia seja Um sonho inútil, ou d'alguma terra Desconhecida mais que a eterna aura Do eterno sofrimento, e onde formas Dos olhos d'alma não imaginadas Vagam, essências lúcidas e (...) Esquecidas daquilo que chamamos Suspiro, lágrima, desolação; Ondas nas quais não posso visionar, Nem dentro em mim, em sonho, barco ou ilha, Nem esperança transitória, nem Ilusão nada da desilusão; Oh, ondas sem brancuras, asperezas, Mas redondas, como óleos e silentes No vosso intérmino e total rumor... Oh, ondas d'alma, decaí em lago Ou levantai-vos ásperas e brancas Com o sussurro ácido da espuma Erguei em tempestades no meu ser. Vós sois um mar sem céu, sem luz, sem ar Sentido, visto não, rumorejante Sobre o fundo profundo da minha alma! Lágrimas, sinto em mim vosso amargor! Não vos quero chorar. Se vos chorasse Como chegar – tantas! – ao vosso fim? Chegado ao vosso fim que encontraria? Talvez uma aridez desesperada Uma ânsia vã de não poder trazer-vos Outra vez para mim para chorar-vos Em vã consolação inda outra vez! Não haver alma, inda ideia vã! Havê-la e imortal, sonho pequeno De término, embora coerente À sua pequenez. Que mais? Havê-la, Havê-la e ser mortal, morrer num Todo Celeste? Vago, vão. Não haverá Além da morte e da imortalidade Qualquer coisa maior? Ah, deve haver Além de vida e morte, ser, não ser, Um Inominável supertranscendente Eterno Incógnito e incognoscível! Deus? Nojo. Céu, inferno? Nojo, nojo. Pra quê pensar, se há-de parar aqui O curto voo do entendimento? Mais além! Pensamento, mais além! O mistério dos olhos e do olhar Do sujeito e do objecto, transparente Ao horror que além dele está; o mudo Sentimento de se desconhecer, E a confrangida comoção que nasce De sentir a loucura do vazio; O horror duma existência incompreendida Quando à alma se chega desse horror Faz toda a dor humana uma ilusão. Essa é a suprema dor, a vera cruz. Querem desdenhar o teu sentir orgulho Oh, Cristo! Então eu vejo – horror – a íntima alma, O perene mistério que atravessa Como um suspiro céus e corações. Saído apenas duma infância Incertamente triste e diferente Uma vez contemplando dum outeiro A linha de colinas majestosa Que azulada e em perfis desaparecia No horizonte, contemplando os campos, Vi de repente como que tudo Desaparecer (...) E um abismo invisível, uma coisa Nem parecida com a existência Ocupar não o espaço, mas o modo Com que eu pensava o visível. E então o horror supremo que jamais Deixei depois, mas que aumentando e sendo O mesmo sempre, Ocupou-me... Oh, primeira visão interior Do mistério infinito, em que ruiu A minha vida juvenil numa hora! Não leio já; queria abrir um livro E ver, de chofre, ali, a ciência toda... Queria ao menos poder crer que, lendo, E em prolongadas horas lendo e lendo, No fim alguma coisa me ficava Do essencial do mundo, que eu subia Até ao menos cada vez mais perto Do mistério... Que ele, inda que inatingido, Ao menos dele que eu me aproximava... Não fosse tudo um (...) Como uma criança que a fingir sobe Uns degraus que pintou no chão... Não leio. Horas intérminas, perdido De tudo, salvo de uma dolorosa Consciência vazia de mim próprio, Como um frio numa noite intensa, Em frente ao livro aberto vivo e morro ... Nada... E a impaciência fria e dolorosa De ler pra não sonhar, e ter perdido O sonho! Assim como um (...) engenho Que, abandonado, em vão trabalha ainda, Sem nexo, sem propósito, eu moo E remoo a ilusão do pensamento... E hora a hora na minha estéril alma Mais fundo o abismo entre meu ser e mim Se abre, e nesse abismo não há nada... Ditoso o tempo em que eu sonhava, e às vezes Eu parava de ler para seguir Os cortejos em mim... Amor, orgulho, – Crenças inda! – pintavam os meus sonhos... E com muita insistência, eu era O amante de belezas (...) E o rei de povos vagos e submissos; E quer em braços que eu sonhava, ou entre As filas (...) prostradas, eu vivia Sublimes nadas, alegrias sem cor. Mas Hoje nenhuma imagem, nenhum vulto Evoco em mim... Só um deserto aonde Não a cor dum areal, nem um ar morto Posso sonhar... Mas tendo só a ideia, Tendo da cor o pensamento apenas, Vazio, oco, sem calor nem frio, Sem posição, nem direcção, nem (...) Só o vazio lugar do pensamento... O Suspiro do Mundo: Vida, morte, Riso, pranto É o manto Que me cobre. Natureza, Amor, beleza, Tudo quanto A alma descobre. O Mistério Deste mundo Teu profundo Olhar leu; D'além dele – Cerra a alma De pavor! – Venho eu. Nada, nada Já acalma Tua dor. Tu bem sabes Ser minha voz Mais atroz De mudo horror No que não diz, E só tu sentes E compreendes. Cerra, infeliz Cerra a (tua) alma Ao meu pavor! (Fausto com os olhos fechados, encolhido na cadeira, treme como que dum grande frio.)
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Fernando Pessoa
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