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ACTO IV O decorrer dos dias E todo o subjectivo e objectivo Envelhecer de tudo não me dói Por sentido, mas sim por ponderado; Nem ponderado dói, mas apavora. Tudo tem as raízes na treva Do mistério e eu sou disso sempre Demasiado consciente, muito Atento ao substancial de existir E à imanência do mistério em tudo. Cada coisa pra mim é porta aberta Por onde vejo a mesma escuridão. Quanto mais olho mais eu compreendo De quanto é escura aquela escuridão; E quanto mais o compreendo mais Me sinto escuro em o compreender . Desde que despertei para a consciência Do abismo da morte que me cerca, Não mais ri nem chorei, porque passei, Na monstruosidade do sofrer, Muito além da loucura da que ri Ou da que chora, monstruosamente Consciente de tudo e da consciência Que de tudo horrivelmente tenho. Todas as máscaras que a alma humana Para si mesma usa, eu arranquei... A própria dúvida, trementemente Arranquei eu de mim, e inda depois Outra máscara (...) arranquei Mas o que vi então – essa nudez Da consciência em mim, como relâmpago Que tivesse uma voz e uma expressão, Gelou-me para sempre em outro ser Do mesmo antes, (...) eu. Assim a própria dúvida, o horror Do mistério do mundo já de mim Foram em alma passados, mais além Fui, e isso que encontrei e em que me falou Como que o ser, isso que não tem nome Claramente e pavidamente vi. Vi e não compreendi; só compreendi Que não há forma de pensar ou crer, De imaginar, sonhar ou de sentir, Nem rasgo de (...) loucura Que ouse pôr a alma humana frente a frente Com isso que uma vez visto e sentido Me mudou, qual se ao universo o sol Falhasse súbito, sem duração No acabar, e num momento tudo Fosse luz, fosse treva numa como Que mudança por mais que imediata Estranha ao tempo. Compreendi Mas o quê? Quando vi e compreendi Compreendendo, só na incompreensão Eu encontro o terror disso que foi Essa revelação. Tudo que toma forma ou ilusão De forma nas palavras não consegue Dar-me sequer, cerrado em mim o olhar Do pensamento, a ilusão de ser Uma expressão disso que não se exprime, Nem por dizer que não se exprime. Vida, Ideia, Essência, Transcendência, Ser, Tudo quanto de vago e prenhe de tudo Possa ocorrer ao sonho de pensar Inda que fundamente concebido Nem pelo horror desse impossível deixa Transver sombra ou lembrança do que é. Com que realidade o mundo é sonho. Com que ironia mais que tudo amarga Me não confrange fria e negramente Esta infinita pretensão a ser! E vi e compreendi, ó alma, e como Que de compreender morri em mim. Não há memória que criada fosse Para servir a ver o que então vi, Mais fundamente do que em pura alma Ou consciência pura. E inda que mais Eu torne a compreender e a ver rasgado O véu do Inominável Templo, eu Tornarei sempre a não saber que vi. A própria consciência abstracta e pura Não tem poder para ser consciência Para essa mais do que revelação... Oh, horror! Oh, horror! Sinto outra vez Essa frieza precursora n'alma Da suprema intuição. Ah, não poder Fora do ser ou do sentir esconder-me! Ah, não poder gritar, pedir, deixar-me! Ah, qualquer coisa mais do que uma luz Vou sentindo que vai breve raiar De dentro em dentro no (...) ser... Aproximar (...) da minha alma. Morte! Treva! (...) a mim! a mim! (Com um grito pavoroso Fausto atira-se de encontro à parede dando com a cabeça umas duas três vezes até cair no chão inanimado) FAUSTO: Febre! Febre! Estou trémulo de febre E de delírio, e ainda assim é grato Tudo isto; não sei que se passa Sem propósito de passar e... não, não, não... Fiquei fingindo que fujo... Fugirei... Onde estou? O que foi? que faço aqui? Arde-me a alma toda, arde-me, arde Como uma coisa que arde. (foge de casa) Ancião, não podes tu Arranjar-me um remédio para a vida? Quero vivê-la sem saber que a vivo, Como tu vives... Corta-me o sorriso Ou te apunhalo! De que te ris? Não rias! Dá-me já, dá-me, dá-me filtros (...) Com que eu me esqueça. (estende a mão) Dá cá, não importa Falar. Tudo é inútil. (arranca-lhe o frasco da mão) Atordoar-me-á isto a alma toda Toda até dentro, muito dentro, velho? VELHO: Não te compreendo, mas se é esqueceres Que queres, bebe. FAUSTO: Quero, quero, vamos, Esqueçamo-nos. Tens algo de mais forte Para mais do que esquecer; depressa, diz. VELHO: Mal te compreendo, mas não tenho. FAUSTO: Este Quer (...) fins. (bebe sofregamente) E dormirei, ó velho, Acabará em mim parte de mim E viverei morto para viver E...e... (cai no chão) VELHO: Estranha e horrível criatura! O que de temor me faz. Todas espécies De homens conheço, por ciência Sei ler os vícios íntimos e os crimes Nos olhares. Mas este... Não é vício Nem crime, nem tristeza, nem parece Propriamente pavor, o que obscurece Como uma escuridão de dentro d'alma, Toda a vida e expressão de sua face. E essas palavras de que usa «esquecer A vida», «mais do que esquecer» «em mim Acabará então parte de mim» Que significam? Não sei, mas sinto Que condizem secreta e intimamente Com esse íntimo ser que eu não conheço. Qualquer que seja essa desgraça, estranho, Dorme e ou esqueça ou aconteça em ti Isso que semelhante ao esquecer Desordenadamente me disseste No teu intimo (...) desejar. Dorme, e que o filtro opere no silêncio Da tua alma, obra interior de paz E que ao descerrares para mim os olhos Eu lhes veja a expressão já transmutada Para compreensível e humana Expressão de um humano sentimento. (Vai para levantar mas retrai-se.) Não; dorme onde caíste e que o filtro Sem sonho ou (...) de alteração Te adormeça a existência intimamente E ao escuro desejo que tu tens (exit)
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Fernando Pessoa
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