Ademir Assunção

A Canção dos Peixes


submersos
nas funduras

(de onde
alma alguma
retorna)

entre algas
rochas e restos
de naufrágios

cegos
e sem memória

os peixes
cantam
seus blues

canções inaudíveis
de um tempo
sem tempo

que ninguém
(nem coltrane
nem hermeto)
pode ouvir

em lugar algum

A Volta do Anjo Torto


no canto da sala a TV ligada
                o pastor gritava
a bolsa despencava
                as contas vencidas
as batatas queimadas
                o dólar subia
o poeta pirava
                “meu deus, como pode
tanta merda enlatada?
                 que gente mais troncha
que vida fodida
                 quer saber
dessa noite não passa
                 ou pulo do empire state
ou me torno um homicida”
                 mas eis que um anjo torto
aquele mesmo, com asas de avião
                  entrou pela porta
um baseado na mão
                 bateu as duas asas
e foi logo dizendo:
                “sai dessa, poeta
para de punheta
                 vive a vida, desencana
come sua mina, segue seu rumo
                  o real é a ilusão virtual
dos que batem a cara contra o muro”

A Vertigem do Caos


um estranho entre estranhos, nômade
entre escombros, procuro sem
procurar, um não-lugar, o ventre
de látex de uma replicante quase
humana, as ruínas enfim apaziguadas
da bombonera, as águas que refluem
pra dentro da baía de todos
os infernos, ali, onde a eternidade
são os dentes de estanho do último sol
mastigando oceanos como fatias
de pizza, lançadas ao ocaso
do fundo de um naufrágio, ante
a dança misteriosa de um feiticeiro cherokee

ARMADURA EM CARNE MOLE


deus me salve da idade madura,
e me sirva o que passa, a brisa
que perdura, gesto escrito com
brasa, pintura além da moldura,
deus me salve, não me serve, o
amarelo que logo apodrece, a boca
coberta de musgo, não é isso
que almejo, os cravos de Cristo, o fraco
pulso do amortecido, persigo
o que persiste, no ontem,
no quando, no não-sei-onde, um
texto-percevejo, traça que rói
a couraça, torre de onde avisto
e percebo, o não-visto que sempre
provo, quanto menos prosa
trovo, a língua que travo
trinca, recolho vida em verso, e
transmuto treva em rosa

AUTO-RETRATO


talvez, uma noite
retorne

cansado das batalhas
e das festas

nada
nas mãos

muito pouco
nos bolsos

os olhos cheios
de imagens

os ouvidos loucos
de sons

shows dos stones
desenhos de escher

a pele tocada
por mulheres chocantes

vagabundo
cruzando estradas

ítacas
revisitadas

exausto das guerras
um dia, talvez

retorne

sem lenço
sem retoques

talhos
no rosto

cicatrizes
na pele da alma

a paisagem
se dissolvendo

velho, arqueado

o sapato
todo furado

e dois versos
na camiseta:

eis a vida
que não vendo