Alice Ruiz
Teu corpo seja brasa
teu corpo seja brasa
e o meu a casa
que se consome no fogo
um incêndio basta
pra consumar esse jogo
uma fogueira chega
pra eu brincar de novo
2
Alice Ruiz
topa um pacto de sangue
com essa cigana do futuro
que lê
o passado na tua boca
o presente no teu corpo
e nos teus olhos
tanto quanto nos astros?
Publicado no livro Paixão xama paixão (1983).
In: RUIZ, Alice. Pelos pelos. São Paulo: Brasiliense, 1984. (Cantadas literárias, 24
3
Alice Ruiz
Se
se por acaso
a gente se cruzasse
ia ser um caso sério
você ia rir até amanhecer
eu ia ir até acontecer
de dia um improviso
de noite uma farra
a gente ia viver
com garra
eu ia tirar de ouvido
todos os sentidos
ia ser tão divertido
tocar um solo em dueto
ia ser um riso
ia ser um gozo
ia ser todo dia
a mesma folia
até deixar de ser poesia
e virar tédio
e nem o meu melhor vestido
era remédio
daí vá ficando por aí
eu vou ficando por aqui
evitando
desviando
sempre pensando
se por acaso
a gente se cruzasse...
4
Alice Ruiz
sou uma moça polida
levando
uma vida lascada
cada instante
pinta um grilo
por cima
da minha sacada
Publicado no livro Navalhanaliga (1980).
In: RUIZ, Alice. Pelos pelos. São Paulo: Brasiliense, 1984. (Cantadas literárias, 24
5
Alice Ruiz
assim que vi você
logo vi que ia dar coisa
coisa feita pra durar
batendo duro no peito
até eu acabar virando
alguma coisa
parecida com você
parecia ter saído
de alguma lembrança antiga
que eu nunca tinha vivido
alguma coisa perdida
que eu nunca tinha tido
alguma voz amiga
esquecida no meu ouvido
agora não tem mais jeito
carrego você no peito
poema na camiseta
com a tua assinatura
já nem sei se é você mesmo
ou se sou eu que virei
parte da tua leitura
In: RUIZ, Alice. Pelos pelos. São Paulo: Brasiliense, 1984. p.19. (Cantadas literárias, 24
6
Alice Ruiz
Drumundana
e agora maria?
o amor acabou
a filha casou
o filho mudou
teu homem foi pra vida
que tudo cria
a fantasia
que você sonhou
apagou
à luz do dia
e agora maria?
vai com as outras
vai viver
com a hipocondria
Publicado no livro Navalhanaliga (1980).
In: RUIZ, Alice. Pelos pelos. São Paulo: Brasiliense, 1984. (Cantadas literárias, 24)
NOTA: Paródia do poema "José", do livro POESIAS (1942), de Carlos Drummond de Andrad
7
Alice Ruiz
enchemos a vida
de filhos
que nos enchem a vida
um me enche de lembranças
que me enchem
de lágrimas
uma me enche de alegrias
que enchem minhas noites
de dias
outro me enche de esperanças
e receios
enquanto me incham
os seios
Publicado no livro Paixão xama paixão (1983).
In: RUIZ, Alice. Pelos pelos. São Paulo: Brasiliense, 1984. (Cantadas literárias, 24
8
Alice Ruiz
lá ia eu
toda exposta
àquele olhar
de garfo e faca
vendo
a mesa posta
minhas postas em fatias
ouvindo dos convivas
piadas macarrônicas
Publicado no livro Navalhanaliga (1980).
In: RUIZ, Alice. Pelos pelos. São Paulo: Brasiliense, 1984. (Cantadas literárias, 24
9
Alice Ruiz
na esquina da consolação
com a paulista
me perdi de vista
virei artista
equilibrista
meio mãe
meio menina
meio meia-noite
meio inteira
inteiramente alheia
toda lua cheia
In: RUIZ, Alice. Vice-versos. São Paulo: Brasiliense, 1988. (Cantadas literárias
10
Alice Ruiz
Projesombras (Nós)
por causa de
Regina Silveira
no mundo das sombras
os objetos incham
grávidos de outras formas
silhuetas dissimulando similaridades
paródias e paradoxos
linearidades em desalinho
aqui
armas são a alma das louças
ali
projesombras milimetricamente
calculadas
inauguram com humor
o outro lado do rigor
o primeiro plano
passa a pano de fundo
o que é o fundo?
o que é a figura?
o que é a coisa?
o que é a sombra?
em toda arte
as coisas sonham sombras
In: RUIZ, Alice. Vice-versos. São Paulo: Brasiliense, 1988. (Cantadas literárias
11
Alice Ruiz
Quem ri quando goza
quem ri quando goza
é poesia
até quando é prosa
12
Alice Ruiz
Renga da noite
noite escura
de luz a luz
nenhuma dívida
ontem hoje amanhã
trabalho pra madrugada
noites tardes manhãs
noite no mato
o cheiro de açucena
é nosso lume
noite de verão
escrevendo vento
eu e o vento
noite de verão
vem com a brisa
um cheiro de primavera
noite no escuro
pensando que era barata
matei o vagalume
noite cheia
lua minguante
meu quarto crescente
13
Alice Ruiz
Haicai
primavera
até a cadeira
olha pela janela
luzes acesas
vozes amigas
chove melhor
14
Alice Ruiz
Hai-kais
apaga a luz
antes de amanhecer
um vagalume
vento seco
entre os bambus
barulho d água
tanta poesia no gesto
nenhum poema
o diria
o relógio marca
48 horas sem te ver
sei lá quantas para te esquecer
circuluar
sonho impar
acordo par
desacerto
entre nós
só etceteras
15
Alice Ruiz
boca da noite
boca da noite
na calada em silêncio
grandes lábios
se abrem em sim
In: RUIZ, Alice. Pelos pelos. São Paulo: Brasiliense, 1984. p.16. (Cantadas literárias, 24)
16
Alice Ruiz