Alphonsus de Guimaraens Filho
Canto de Natal
A Criança que dorme
é tua e também minha.
Junto dela a grande noite
se apaga, e se avizinha
a madrugada santa,
com seus rumores castos...
E a Criança repousa,
e a Criança se esquece,
enquanto que no espaço
e no tempo se tece
a coroa de espinhos,
como um luar de sangue
sobre os altos caminhos.
In: GUIMARAENS FILHO, Alphonsus de. Poemas reunidos, 1935/1960. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1960. Poema integrante da série O Unigênito, 1946/1947
2
Alphonsus de Guimaraens Filho
Distraidamente, disquei para o teu apartamento.
Distraidamente.
(Que coisa haverá mais triste que um telefone soando na distância,
sem resposta possível?)
Foi então que, de súbito, caiu em mim a sensação da tua ausência.
Ah, amigo...
Distraidamente, deixei o telefone soar, soar, soar, como se fosses
responder acaso,
como se de alguma parte, não sei de onde, surgisse de novo a tua
voz alegre, o teu riso jovem.
Cheguei a ouvir teu riso.
Ah, amigo...
Distraidamente, como que à espera,
(em que astro atenderias?)
distraidamente, assim fiquei.
In: GUIMARAENS FILHO, Alphonsus de. Poemas reunidos, 1935/1960. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1960. Poema integrante da série Aqui, 1944/1960
3
Alphonsus de Guimaraens Filho
O Poeta e o Poema
Nenhum poema se faz de matéria abstrata.
É a carne, e seus suplícios,
ternuras,
alegrias,
é a carne, é o que ilumina a carne, a essência,
o luminoso e o opaco do poema.
Nenhum poema. Nenhum pode nascer do inexistente.
A vida é mais real que a realidade.
E em seus contrastes e sequelas, funda
um reino onde pervagam
não a agonia de um, não o alvoroço
de outro,
mas o assombro de todos num caminho
estranho
como infinito corredor que ecoa
passos idos (de agora,
e de ontem e de sempre),
passos,
risos e choros — num reino
que nada tem de utópico, antes
mais duro do que rocha,
mais duro do que rocha da esperança
(do desespero?),
mais duro do que a nossa frágil carne,
nossa atônita alma,
— duros pesar de seu destino, duros
pesar de serem só a hora do sonho,
do sofrimento,
de indizível espanto,
e por fim um silêncio que arrepia
a epiderme do acaso:
E por fim um silêncio... Nenhum poema
se tece de irreais tormentos. Sempre
o que o verso contém é um fluir de sangue
no coração da vida,
no pobre coração da vida, aqui
paralisado, além
nascente no seu ímpeto de febre,
no coração da vida,
no coração da vida,
(da morte?)
e um frio antigo, e as bocas
cerradas, olhos cegos,
canto urdido de cantos sufocados,
e uma avenida longa, longa, longa,
e a noite,
e a noite,
e, talvez, um sublime amanhecer.
(...)
Não há poema isento.
Há é o homem.
Há é o homem e o poema.
Fundidos.
In: GUIMARAENS FILHO, Alphonsus de. Nó: poemas. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1984. Poema integrante da série Nó
4
Alphonsus de Guimaraens Filho
Quando eu Disser Adeus
Quando eu disser adeus, amor, não diga
adeus também, mas sim um "até breve";
para que aquele que se afasta leve
uma esperança ao mesno fadiga
da grande, inconsolável despedida...
Quando eu disser adeus, amor, segrede
um " até mais" que ainda ilumine a vida
que no arquejo final vacila e cede.
Quando eu disser adeus, quando eu disser
adeus, mas um adeus já derradeiro,
que a sua voz me possa convencer
de que apenas eu parti primeiro,
que em breve irá, que nunca outra mulher
amou de amor mais puro e verdadeiro.
5
Alphonsus de Guimaraens Filho
Rota do Desconhecido
Quando eu seguir na rota do desconhecido
a minha voz ficará cantando na tua memória
e tua alma sentirá a presença
do meu sonho em teu sonho,
do meu riso de perdão à miséria do mundo.
Então, Amada, canta!
A noite se embalará com as canções marinhas
subindo, diretas, do teu coração.
Tua alma será, então uma praia branca,
onde cantarão os pescadores tristes:
os teus sonhos de amor abraçados ao desânimo...
Eu irei longe... Minha memória errará nas estrelas
e minha alma será o vento que acarinha plantas,
que acarinha flores sonolentas.
Eu irei longe, eu irei tão longe,
que meu coração vencerá distâncias
para ouvir tuas canções praieiras,
amada, grande Amada,
e minha alma será o céu pontilhado de estrelas
que há de fazer adormecer tua saudade!
Publicado no livro Lume de estrelas: poemas (1940).
In: GUIMARAENS FILHO, Alphonsus de. Poemas reunidos, 1935/1960. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1960. p. 27-2
6
Alphonsus de Guimaraens Filho
A Todos os Poetas
A todos vós que um dia pressentistes
os passos alumbrados da poesia
na vossa alma soar — saudoso dia
que mais humanos, graves, e mais tristes
para sempre vos fez... A todos vós
que, amando, o amor sentistes impossível,
que, vendo o mundo, amastes o invisível,
e, ouvindo o canto, ouvistes nele a voz
de um reino imerso em névoa como clara
ilha na solidão... E deslumbrados
as palavras no vácuo erguestes para
reanimá-las e reacendê-las,
a todos vós o céu acolhe, consolados
pela luz da mais casta entre as estrelas.
Publicado no livro Sonetos com dedicatória (1956).
In: GUIMARAENS FILHO, Alphonsus de. Poemas reunidos, 1935/1960. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1960. p. 270-271
7
Alphonsus de Guimaraens Filho
Canção da Estrela Polar
Na estrada do Acaba-Mundo,
somente a estrela polar.
Vi a morte: fui ao fundo.
Na estrada do Acaba-Mundo,
nenhum mar.
Nenhum mar? Nenhum deserto.
Nenhum sopro, nem luar.
Longe, os anjos. Muito perto
o mundo, a meus pés aberto.
Nenhum mar.
Volta e meia a estrela ria.
De mim? De ti? Do luar?
O luar não existia.
Eu morrera. E a noite fria...
Somente a estrela polar.
Publicado no livro Poesias (1946).
In: GUIMARAENS FILHO, Alphonsus de. Poemas reunidos, 1935/1960. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1960. p. 80. Poema integrante da série Nostalgia dos Anjos, 1939/1944
8
Alphonsus de Guimaraens Filho
Cantilena II
A Mario Quintana
Mansa cantilena
num mundo que chora:
até me dá pena
te escutar agora.
Ao ouvir-te, tento
ir até ao fundo
de um deslumbramento
que ainda há no mundo
(pelo que segredas,
pelo que me falas),
tu que assim te quedas
em mim, se te calas,
— ai das cantilenas
num mundo de pranto! —
chama que asserenas
e em nós pões o encanto
de nem sei que dia
feito de inocência,
sopro de poesia
da mais pura ardência.
In: GUIMARAENS FILHO, Alphonsus de. Nó: poemas. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1984. Poema integrante da série Nó
9
Alphonsus de Guimaraens Filho