Antônio Barreto

A Sombra


Estou atrasado, lá vou eu correndo
e a sombra atrás...
Pé-pra-que-te-quero, a língua de fora
e a sombra atrás...

Vou achar um pé-de-ventania
para escapar dessa mania
de fugir da sombra todo dia
e noite
como um bicho-papão...

Pé-de-anjo, pé-de-pato e pano,
pé-de-chinelo sem pé-de-meia,
perambulando,
pererecando
por aí...

Estou adiantado, lá vou eu pensando
e a sombra atrás...
Olho no relógio, está atrasado,
e a sombra atrás...

(...)

Mas tem uma coisa
a mais pra contar:
essa grande safada
que vive acordada
é o meu avesso!

Se tento pegá-la,
até mesmo no sonho,
me desconheço:
ela me fantasia.

Se tento guardá-la
no travesseiro
ela me dá um beijo:
— Já é meio-dia!


In: BARRETO, Antônio: Brincadeiras de anjo. Il. May Shuravel. São Paulo: FTD, 1987. p.10-13. (Falas poéticas

A Pulga Cheia de Pulgas


Para Mario Quintana e Rita Lee,
minhas pulgas de estimação.

Dona Pulga se coçando,
lá no fundo do balaio,
salta como uma maluca
e pula e rola, sem sono.

Dona Pulga assim pulando,
cheia de pulgas na cuca,
pula então, pererecando,
pra cuca do Papagaio.

— Currupaco-papaco-paco,
fala o louro coçando o papo.
Que pulga cheia de pulgas!
— Currupaco-papaco-paco.
Parece cachorro sem dono
ou pulga não toma banho?

Dona Pulga leva um sopapo
do Papagaio Maluco
e vai dormir atordoada,
meio pirada da cuca.

Sonha que cata piolho
no papo do Papagaio,
que no fundo do balaio
papa mosca e pisca um olho.

Porém só eu sei dizer
seu segredo de menina:
é que ela quer ser
a primeira bailarina.

Por isso vive ensaiando
seus passos por todo lado.
Dança rock e dança tango,
polca, samba e xaxado.


In: BARRETO, Antônio. Brincadeiras de anjo. Il. May Shuravel. São Paulo: FTD, 1987. p.24-27. (Falas poéticas

E o menino dormia e sonhava


E o menino dormia e sonhava
que o mundo era grande e o que era?
— Era a mágica música das fadas
cantarolando no escuro?
— Ou a rua que morava em tudo,
no mundo que ele imaginava?

E no mundo cabia o Circo, o peixe, o gorila.
E no mundo cabia o riso, o palhaço, a nuvem
e cabia também no mundo
formiga lutando boxe...

e a barata tirando a roupa, pra nadar na poça d'água
e a minhoca de patins, com seu penteado esquisito
e a lesma veloz que corria, atrás de sua própria sombra
e o percevejo percebendo que a perereca pulava
e a pulga de pára-quedas descendo num cão deitado

(...)

e o tatu-bola bolando um plano pra chegar do outro lado
e aquela baleia de nuvem que o vento desenhava no céu
e o dinossauro correndo da lagartixa marrom
e o jacaré com ciúmes de antepassado tão bom!

e o peru que bebia pinga, um dia antes do Natal,
e o galo conferindo as horas, no seu relógio de bolso,
e o pinhé trepado no boi, catando os seus carrapatos,
e a cegonha que nunca teve filho, por falta de tempo e mais,
nada
e a alva elegância da garça, doendo de branco no verde!

(...)

E o menino espichava a janela
pra ver se era tudo verdade:
era a Lua encurralada na rua enluarada
dormindo bem fresquinha
numa poça d'água.


In: BARRETO, Antônio. Lua no varal. Il. Paulo Bernardo F. Vaz. Belo Horizonte: Miguilim, 1987. p.18. Poema integrante da série A Poça d'Água

Cinema Mudo


No tempo do Cinema Mudo
quando a noite calava o bico
todo mundo, gordo ou magro,
punha embaixo do travesseiro
uma caixa de lápis-de-cor
só pra sonhar colorido


In: BARRETO, Antônio. Isca de pássaro é peixe na gaiola: pequeno concerto para realejo, caniço & vitrola. Il. Débora Camisasca. 2.ed. Belo Horizonte: Miguilim, 1990. p.13. (Rimas). Poema integrante da série O Tempo que o Tempo Tem

Ária de América por um Antigo Marinheiro


Árvore ser de alvorecer e sendo
assim em raiz em nua face e foice
(alvorossonho foi-se, mente e lavra)
que de tão-somente semeou palavra

Por de onde sol anzolazul em céu
de peixe e mar esculpido e pronto
: frontisprefácio : em seta dor dedilha
a ária em arpa : peixe arpoador

arma da terra ameri ca me tengo
mi na vida nota cor de lheira
por de onde ondeias oceano
a tantas noites a tlanti cais me vengo
atlantas noches de mandar te andes

e ar vou ser em nada: serenata
peixe tecla dor de pescantar
anzolazul em punho, espada nua e n'antes
morrer de américa os relógios de neruda.


In: BARRETO, Antônio. O sono provisório. Rio de Janeiro: F. Alves, 1978. p.38. Poema integrante da série Fantasias da Fala