António Cabrita

ANTERIOR À CARNE


Eis o passe-vite: um Deus trabalha em ti,
ilegalmente. Não se deslinda o que o atrai
às junções, a ideia fixa, mas o teu corpo
é o seu placebo, o seu sistema de radares.
Que guerra o move, exterior ao monte de feno
onde dormitas? Que afago atraiu o abelhão
que flamejou num intenso negrume a mão?
E porquê esta, inocente, que nunca depenou
perdiz? Fala-se do Tempo, um crânio
que se locomove a vapor
contra a evidência galopante das imagens.
O abismo alça-se, dentro,
anterior à carne. Fuck!

SOPRA AS TUAS VELAS


O corpo com a idade impõe ora folga, ora um alpendre certo (com vinha de enforcado) aos apartes, enquanto surripia o humor aos corvos.
Um dia esquece-nos, expele pelos olhos uma faúlha preta, e eis-nos arredados
de toda a escuta como as flores de plástico, que macambuzam a televisão da avó.
Já fui mais festivo, fotografava ao acaso e, na ampliação, detectava a secreta geometria dos fundos, as gengivas que desbravam o riso de Deus.
Mais presciente a minha filha de três anos: «és a sereia Ariel ou o linguado?»
Nem hesita: o linguado!
Entra no teu silêncio e sopra as tuas velas, recomendava, astuto, o Victor Hugo

A CONDIÇÃO DO POEMA


Não te desanime a sina de papagaio
preso ao poleiro de certas palavras vãs,
já pútridas, e de cadências clânicas,
num mundo devotado ao desapego.
Traças um mapa de ausências:

ao norte rareiam os albatrozes - quem
adivinha várzeas no subsolo das portagens,
licornes no esmaecido das gravuras,
se desertos já ruminam o Amazonas?
Em Maputo, onde o coração s’areja,

não falta a miséria. Em que desvelos
novos querias tu a língua, essa eterna
caloteira? Qual é o teu abrandamento
de onda? Disso depende o que vês.
Mesmo do poleiro onde ferves a 500º

Celsius. Não te desanime o desígnio
d’ave coada pelo agoiro. A voz que ‘tava
na cave é o tremor que te respira, a gaguez
em que embates no escuro, o halo - consorte
da morte - que te aguça os olhos.

AUTO-RETRATO NUM CAMPO DE RÂGUEBI


Intercepta-me o espelho, o mais eficaz placador de râguebi. Eis-me inteiro na carne
amassada que a prata me devolve. Salva-me o olhar, surrado mas nada merencório
pois amanhã colherá sol – e chuva – e pernas morenas.
O que o tempo dispensa é a conversa fiada, a crença de que um seio
possa erguer um amor de alvenaria, ao abrigo de aguaceiros,
enquanto nos confia a paciência e a calva luz do humor
que vai desanuviando em nós a falta de Deus.