Antonio Fernando De Franceschi

Corpo

"... o único roteiro é o corpo. O corpo."
João Gilberto Noll


o corpo quer ordena sem recusa da vontade
a implacada ira seu domínio sabe altíssimo
sobre toda resistência quer o corpo em sanha
o outro corpo que no enlace o corpo assanha
e é fúria o doce nome seu jubiloso corpo
livre de amarras ou temores na aguda hora
que sempre mais e muito o infrene corpo quer
e a seu regaço incita em febre o corpo alheio
e logo é quieto o escuro abismo intranscendido
pois só o corpo aplaca o corpo em seu roteiro


In: DE FRANCESCHI, Antonio Fernando. Caminho das águas: poemas. São Paulo: Brasiliense, 1987. Poema integrante da série Em Campo Aberto
2 Antonio Fernando De Franceschi

Giga

"Love is unhappy when love is away!"
James Joyce


escura a sina de quem ama
e entra inteiro nessa trama

pois sendo o amor ardida chama
mais machuca quem mais ama

e não acalma quando queima
no abrasado peito a dor insana

saber que o fogo apaga um dia
e que esse dia não demora

porque o amor mesmo doído
nunca morre em boa hora


In: DE FRANCESCHI, Antonio Fernando. Caminho das águas: poemas. São Paulo: Brasiliense, 1987. Poema integrante da série Em Campo Aberto.

NOTA: Referência aos sonetos [Amor é fogo que arde sem se ver;], de Camões, e "Soneto de Fidelidade", do livro POEMAS, SONETOS E BALADAS (1946), de Vinicius de Morae
3 Antonio Fernando De Franceschi

Sílex

face angular
que cavo a talho
esta em que me mudo
reiterado
cópia provável de mim
no mudo rosto
e abrasado golpe
que desfecho:

minha antes não fosse
a dor
e a mão crispada
que desce
fere
e me desvela pedra


In: DE FRANCESCHI, Antonio Fernando. Sal. São Paulo: companhia das Letras, (1989). Poema integrante da série Perfis em Pedra.
4 Antonio Fernando De Franceschi

Capitão Blood

no assalto
em que me lanço
temeroso
ancas acima
desato ao vento
dorso e cabelos

mas teus velames
travo firme
sustenidos
em meu medo:

a que porto
afinal
me destina
esta viagem?

em que ilha
me socorro
se o mar
me der vertigem?


In: DE FRANCESCHI, Antonio Fernando. Caminho das águas: poemas. São Paulo: Brasiliense, 1987. Poema integrante da série Em Campo Aberto
5 Antonio Fernando De Franceschi

Palavra

— branco sobre
o branco
Orides Fontela

mesmo
o branco absoluto
intransparece
se escrevo:
branco
sobre a página

consumada
a palavra rompe
a virtual nudez

e turva
macula
para dar-se à luz

pois sendo luz
é também
perda
ruína
derrelição


In: FRANCESCHI, Antonio Fernando De. Sal. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 141. Poema integrante da série Fólios
6 Antonio Fernando De Franceschi

Serpente

cauda e dente
inteira
se morde
a serpente
lenta se devora
ao norte
funda se engole
ao sul
e nada sobra
de uma e outra
a que come
e a comida
mais que a mesma
ancestral serpente
e a infinda fome
que a devasta
e nem morta
de si mesma
se sacia

In: DE FRANCESCHI, Antonio Fernando. Caminho das águas: poemas. São Paulo: Brasiliense, 1987. Poema integrante da série Silva Rerum
7 Antonio Fernando De Franceschi

Esteio

te palmilho
perfiladas coxas
contra vento e marés

te percorro
mediterrâneo
promontórios

te amparo a fronte
e o espasmo
— ato final


In: DE FRANCESCHI, Antonio Fernando. Caminho das águas: poemas. São Paulo: Brasiliense, 1987. Poema integrante da série Em Campo Aberto
8 Antonio Fernando De Franceschi

Garça

1.

de relance
mero
surpresa
é te colher
em vôo:

o já fugaz
— ponto:

em riste
no horizonte

2.

a penas
te desenho
em derrisão:

asas taorminas
securas
branco arco sob o céu

3.

pelo estuo das águas
astúcia:

flaminga?
flamínia?

no claro em pluma
alvejo sem rasura
a branca garça
em sua alvura


In: DE FRANCESCHI, Antonio Fernando. Sal. São Paulo: companhia das Letras, (1989). p. 55-57. Poema integrante da série Poemas ao Natural.
9 Antonio Fernando De Franceschi

Geografia

"... Touch me, touch the palm of your hand
to my body as I pass..."
Walt Whitman


O leve arrepio de tuas mãos
me comanda suave
sigo-te pelos lugares de mim
que não conheço
amanheço-me vales
me percorro colinas
sou o campo em que te apraz
me transformares
ou senda perdida
num dorso de montanha

Me desvelo geografia
ao teu desejo
qual queiras
para colher-te em prados
ravinas
e na fina erva que me cobre o peito
te sentir os dentes
palmo a palmo cortando rente
sem pressa de me cegares
no olho da paixão


In: DE FRANCESCHI, Antonio Fernando. Caminho das águas: poemas. São Paulo: Brasiliense, 1987. Poema integrante da série Em Campo Aberto
10 Antonio Fernando De Franceschi
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