António Ramos Rosa

Não Posso Adiar o Amor Para Outro Século


Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração

O Funcionário Cansado


A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só

Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Porque me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?

Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isso todas as noites do mundo uma noite só comprida
num quarto só

Este homem que esperou


Este homem que esperou
humilde em sua casa
que o sol lavasse a cara
ao seu desgosto

Este homem que esperou
à sombra duma árvore
mudar a direcção
ao seu pobre destino

Este homem que pensou
com uma pedra na mão
transformá-la num pão
transformá-la num beijo

Este homem que parou
no meio da sua vida
e se sentiu mais leve
que a sua própria sombra

Estou vivo e escrevo sol


ao Ruy Belo

Escrevo versos ao meio-dia
e a morte ao sol é uma cabeleira
que passa em fios frescos sobre a minha cara de vivo
Estou vivo e escrevo sol

Se as minhas lágrimas e os meus dentes cantam
no vazio fresco
é porque aboli todas as mentiras
e não sou mais que este momento puro
a coincidência perfeita
no acto de escrever e sol

A vertigem única da verdade em riste
a nulidade de todas as próximas paragens
navego para o cimo
tombo na claridade simples
e os objectos atiram suas faces
e na minha língua o sol trepida

Melhor que beber vinho é mais claro
ser no olhar o próprio olhar
a maravilha é este espaço aberto
a rua
um grito
a grande toalha do silêncio verde

Teu Corpo Principia


Dou-te um nome de água
para que cresças no silêncio.

Invento a alegria
da terra que habito
porque nela moro.

Invento do meu nada
esta pergunta.
(Nesta hora, aqui.)

Descubro esse contrário
que em si mesmo se abre:
ou alegria ou morte.

Silêncio e sol — verdade,
respiração apenas.

Amor, eu sei que vives
num breve país.

Os olhos imagino
e o beijo na cintura,
ó tão delgada.

Se é milagre existires,
teus pés nas minhas palmas.

Ó maravilha, existo
no mundo dos teus olhos.

Ó vida perfumada
cantando devagar.

Enleio-me na clara
dança do teu andar.

Por uma água tão pura
vale a pena viver.

Um teu joelho diz-me
a indizível paz.

Para um amigo tenho sempre um relógio


a João Rui de Sousa

Para um amigo tenho sempre um relógio
esquecido em qualquer fundo de algibeira.
Mas esse relógio não marca o tempo inútil.
São restos de tabaco e de ternura rápida.
É um arco-íris de sombra, quente e trémulo.
É um copo de vinho com o meu sangue e o sol.

Numa Fronte Ausente


Terra e noite,
as mãos escavam.
Insistem e desfazem-se
numa fronte ausente.

Na cabeça subsistem
algumas palavras inúteis.

A mão devagar traça
— vai traçar —
uma rede de sinais de que dependo.
A luz descobre o corpo.

Algumas palavras a mais desaparecem.
Neste instante
a pedra é nua.

Sílabas


Sílabas.
O álcool de Dezembro é frio e rouco.
O cigarro amarga. É um cigarro clínico.
Sílabas.
Com sílabas se fazem versos.

O tampo da mesa é liso.
Uma colher é uma forma complexa
familiar e deliciosa.
Um copo é nítido
como um criado sem servilismo.
Uma mulher condensa-se
no olhar do poeta.
Um corpo. Duas sílabas.
O dinheiro à justa. A gola da gabardina
para tapar a nuca
e os ouvidos.
Sílabas.

Atravessado Pela Cidade


O braço estendido toca o fogo da rua

A secura do ar esplende

Um punho cravado
em plena praça

O ouvido tenso de rumor
numa flor de pedra

Os automóveis passam sobre a mão

Em Qualquer Parte Um Homem


Em qualquer parte um homem
discretamente morre

Ergueu uma flor
Levantou uma cidade

Enquanto o sol perdura
ou uma nuvem passa
surge uma nova imagem

Em qualquer parte um homem
abre o seu punho e ri

10. Rosto Enraizado Na Palavra


10
Rosto enraizado na palavra
neste espaço de nula vocação
mas quase o grito gritando o grito.

Nesta folha neste instante de jardim
sobre este banco ou esta pedra
ó terra no silêncio da folhagem!

Isto que foi, seria no não-não ser
ou aqui
neste jardim do não impuro
ó pobreza da água desta mão!

12. Por Ela, o Qual: Por Ela


12
Por ela, o qual: por ela
a iluminada lâmina cortando
o papel sobre a figura impura.

Nó límpido no desnudar da face
não exemplo na erva do seu ventre
no extremo lá da extrema árvore
no ribeiro gracioso ou na torrente.

Por ele: ali: por ela
cortado o papel cortada a sombra
fica o recorte da figura dele.

1. a (In)Coerência do Fogo


O desenho a fogo: os dedos e o sopro.
As pedras soltas suscitam algo,
uma textura sem segredo, aberta.
Como se não procurasse olho: sempre o deserto?

O corpo e essa onda, essa pedra — é uma linha
e o tumulto dos músculos no mar
eis o desejo da perda e do encontro
contra a parede, contra esta página
este deserto — o mar.

O sopro do incêndio da folhagem
esta rasura
no raso da inércia
ó apagada força amor do mar deserto força

reúno ou disperso     pedras sobre o mar
ou pedras

Onde o corpo     onde o desejo
perante o vento
a frágil força do corpo (aranha inerme)?

Se eu soprar as vértebras do fogo aqui
se subverter a folha e nu gritar

Eu continuo com estas pedras no deserto — no mar?
Nem são pedras estas pedras mas a garganta
enfrenta o vento — e o deserto,
que corpo que corpo se perde ao rés da página
ou terra?

Mas se não fosse o deserto — se fosse a praia
a música do corpo
e o vento no mar
e o teu corpo no meu corpo?

Mas tu esperas três palavras
três pedras
— e sem o fogo sem a folhagem sem o mar

Se um signo fosse a coluna do sangue
perante a maré perante o fogo
e não a morte este céu deserto
esta outra morte cega ao vento
este silêncio contra o peito?

Escrever assim mesmo com os ossos
com a proa do externo
com a morte no deserto
com as sílabas no deserto

Mas se o silêncio da praia — onde o mar? —
o silêncio da página
suscitassem essa música do corpo
aqueles membros brancos
vermelhos
em torno ao centro — e a respiração do mar?

Um braço, uma torção do braço pela violência do vento
um cântico na praia
o corpo contra o corpo amante amado?

Uma sílaba apenas verde ou branca
e não o torso musical
e não a pedra do mar o esplendor da praia?

Ninguém ouve o grito sobre o vento
sobre o ventre de ninguém
nada se ouve entre estas pedras
nada é aqui neste deserto

Mas isto é, isto é, como se
um signo
fosse o sangue da lâmpada?

Desenho as formas vivas na areia
desenho este sulco no meu corpo
soçobro sobre o sulco — em frente o mar?

Que corpo se levanta? É um corpo, um outro corpo?
Um corpo que se ergue sobre a espuma
ou um sinal apenas sem o sangue?

A boca morde os dentes
a página está deserta
a praia está deserta.

A minha mão ergue-se num sinal vão
como se não desistisse.

As pedras nem são pedras
mas palavras
mas o desejo de um contacto incandescente
mas o ardor de um persistente insecto.

Praia, mar, sulcos na areia, vento
ou só deserto
eu vos invoco e vos insuflo a chama
da garganta,
eu apelo para o cântico. Caminho?

Mais do que a sílaba do mar
mais do que a flor imprevista
mais do que a sombra sobre o ombro
mais do que o ouro da areia
eu subscrevo o branco     um novo corpo.
Ainda que nada veja senão as pedras
que delimitam o vazio
eu estou à beira de     eu sou o intervalo
entre a folhagem e o fogo
e o silêncio é um sinal
do corpo.

11. o Desenlace a Marca o Timbre


11
O desenlace a marca o timbre
razão de escrever viver morrer
na ideia exemplar do jamais aqui.

Mas será aqui o cacho apaixonante
da uva desses olhos de um frio branco
o rosto da irmã amante de altas pernas.

Será no pó sem a estrutura e na estrutura
do território agreste o rosto brusco
gritando o rosto aqui ou o rastro dele.

1. o Grito Que Não Chama, a Chama Verde


1
O grito que não chama, a chama verde
submersa ou não, é a não-leitura
do corpo calado que o poema lê.

E o silêncio, o silêncio do grito
é sempre outro, além, nos muros, sobre a sebe
nunca a serpente ou serpentina mas
o grito na neve, o grito sob a neve.

Quem pára sobre a nuvem sobre a boca
dá o sinal do grito se aqui o grito
não clama o clamor mas incendeia

a não-leitura — leitura das trevas verdes
em que a boca sobrenada sobre nada
grita o silêncio do grito o grito do silêncio.