Armando Silva Carvalho

O AMOR NAS ESCADAS DO METRO


De quem é o braço?
E os cabelos sujos, roídos pela caspa
e falta de água?
E a perna que enlanguesce sob o tecido ruço
que não retém memória?

Meu deus, dirão os velhos ao descer com vagares
as escadas do metro, a mocidade agora
é sexo só e sujo a rolar pelo chão.

Mas quem deita o olhar com mais ternura
e calma
sobre o novelo dos dois
descobre no ar em volta a tessitura tensa
do desejo, um halo amarrotado pela fugaz curvatura
do sonho.

E na lama pérfida que se sobrepõe aos beijos
a parábola fiel às gerações
da terra.

Forçoso será então que caia a chuva,
e cubra a carne sôfrega
exposta à multidão.
Os solitários amaldiçoam toda a inocência
exibida em degraus, caída de bocas tão imundas,
tão perto do inferno
e do êxtase.

O amor pode ser também dalguns que passam
de olhos feridos,
o coração apertado de sangue
e breve compaixão.

Mas só os dois, ali, enleados na energia da alma,
são um palco da alegria do mundo,
gratuito,
à distância da morte e da sua serpente
circular.

São jovens, e estão a soletrar
tão mansos, o horror apreendido pelas bocas
que despontam,
como a planta se eleva do chão endurecido,
como o animal à luz no limiar do medo.

Os dois, ali, expectantes, transparentes, nus,
na natureza de sempre.

Soneto Panorâmico


Do alto deste hotel de cinco estrelas
Lisboa não morreu. Nesta revista
até se fala em novas caravelas
e pra tamanho ardor tão curta a vista.

Dum lado o rio do outro o cimenteiro
nas suas sete quintas da marinha
em cima o céu de barro do barbeiro
em baixo o sol a fazer farinha.

Nos silos da mais sábia segurança
boémia estouvanada e bem ligeira
os anjos dão as mãos na contradança

Da seringa mais nobre e derradeira
que existe a refulgir na lua mansa
à esquina onde se dorme a noite inteira.

OS DOIS DE LANZAROTE


Eram um casal aéreo, cruzavam aeroportos,
digo eu o delator, o escriba acocorado, e sigo-os
nas suas fantasias voadoras,
açambarcando as nuvens, os romances,
toda a luta de classes
nas longas, estreitíssimas passagens dos jactos
pelo céu alucinante e cru.

Um casal a encher uma península.
Ruídos pérfidos perseguiam a sua alta rota revoltada,
a ela lambuzavam-lhe os vestidos, transparentes,
abertos sobre as nuvens.
E a ele arrancavam-lhe os cabelos
agarrados ao cérebro.
Mas eles voam mais alto, no assombro, mais livres.

Só eu pareço agora um cão acabrunhado
nas coxias deste chão sem ar,
e os olhos presos naquela exuberância.
Eles são dois padrões erguidos na terra retalhada
pelos elegantes domadores da fala,
e do mar mediterrâneo.

Recordai, ó leitores, a exibição da ternura,
a estridência feliz dos abraços frente à multidão,
a imponência do sucesso a pulso.
Um velho, uma mulher madura, uma ilha vulcânica.
E o ar que acolhe os seus impulsos
com a firme decisão de fazer estremecer
o mundo.

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com mãos, olfacto, dentes, boca
que procuro o cheiro dos animais à mesa,
da roupa amarrotada duma antiga
posse viva e de criança,
da comida espessa na sua longa espera,
a mais reconfortante,
o rumor entontecido dos pássaros,
os amigos seguros, a ternura dos tios, a pancada cega,
sempre repetida,
e pelo amor da mãe desmoronada.

6


Este amor está preso aos pés da terra,
o seu caule é de ferro,
cresce na minha boca, estremece e resiste
nas frágeis construções
da nossa antiga, privada, fiel
arquitectura.