Bento Prado Júnior

A Rendeira


Rendeira, boa rendeira
não deixarás de tecer,
que o tecido é trabalheira,
que a gente, queira ou não queira,
há de ter a vida inteira,
como castigo e prazer...

Desde que o dia amanhece,
rendeira tece que tece,
não pára de tecer...

E o branco urdume entretece,
com o alvor da sua prece
roubado do amanhecer!

Tem na renda o seu cuidado,
tece-a para o seu noivado...
Mais alva não pode ser!

Mas por arte do malvado,
não tinha o lavor findado,
fere a sua nívea mão...

E o sangue corre encarnado
mancha-lhe todo o rendado...
Quanta dor no coração!

E a rendeira se entristece,
pois na renda que ela tece,
a imagem da vida tem,
cujo tecido oferece
manchas de sangue também...

Rendeira boa rendeira,
não deixarás de tecer,
que o tecido é trabalheira,
que a gente, queira ou não queira,
há de ter a vida inteira,
como castigo e prazer...

Casa Destelhada


A casa é um templo humilde, em cujo tecto
há goteiras que choram, noite e dia;
o seu recinto todo está repleto
do verde musgo, que a humanidade cria.

Oculta um monge de sereno aspecto
na solidão do templo, a luz sombria.
Vota-lhe o monge singular afeto,
que lhe aviventa a fonte da poesia.

Nunca lhe entre os humbrais alma profana!
Lugar tão venerando dessa forma,
ofendê-lo-á, por certo, a vista humana!

Pois se procede, nesse ambiente sério,
ao milagre da dor, que se transforma,
no cadinho do amor, em refrigério...

A Lua-Cheia


Minha mãe, doce velhinha,
que vontade de chorar!
Saudade que me espezinha,
lembrança do nosso Lar...

Nosso sítio...a moradia...
o arvoredo do quintal,
que a lua-cheia cobria
com seu delgado sendal...

A lua-cheia de outrora
tinha muito mais poesia!
São Jorge de bota e espora,
-que soberba montaria!-
Lá, lança em riste, feria
o feio e feroz dragão,
que o duro ferro mordia,
nas ânsias da convulsão!

A lua-cheia, hoje em dia,
é simples bola vazia
que rola pela amplidão...
Despojo de terra, fria,
alma vivente não cria,
nem sequer vegetação!
A lua-cheia, hoje em dia,
não tem significação!

Minha mãe, doce velhinha,
que vontade de chorar!
Saudade que me espezinha,
Lembraça do nosso lar...

Nosso sítio...a moradia...
o arvoredo do quintal,
que a lua-cheia cobria
com seu delgado sendal...

A Minha Cruz


Esta cruz que me coube por herança,
sofrê-la-ei, Senhor, como ela veio:
não vos peço afasteis vossa vingança
que mereço,-bem sei,- sofrê-la em cheio.

Mas não me abandoneis, porque receio
não ser capaz da dor que já me cansa:
acudi-me, Senhor, vós, força e meio,
com que a vitória sôbre o mal se alcança!

Que eu, refeito de forças, assim possa,
com a oferta tão só das minhas dores,
oferecer-vos coisa de valia!

Sinta eu viva a impressão que é força vossa
minha vitória sobre os dissabores,
e que sois toda a minha valentia!

À Minha Filha


Nos momentos terríveis de abandono,
quando o sol nega luz ao claro dia
ou a noite cruel me rouba o sono,
como a tua saudade me excrucia!

Mas, quando às mãos divinas me abandono,
seguro amparo à humana desvalia,
sinto que és quem me eleva ao eterno trono,
condutor excelente, excelso guia.

És a luz que alumia a minha estrada,
anjo bom que me guia os tardos passos,
para elevar-me ao termo da escalada.

Sinto erguer-me feliz pelos espaços,
criatura mesquinha, sombra, nada,
na infinita riqueza dos teus braços!