Camilo Pessanha

Na cadeia


na cadeia os bandidos presos!
o seu ar de contemplativos!
que é das feras de olhos acesos?!
pobres dos seus olhos cativos

passeiam mudos entre as grades,
parecem peixes num aquário.
- campo florido das saudades,
porque rebentas tumultuário?

serenos... serenos... serenos...
trouxe-os algemados a escolta.
- estranha taça de venenos
meu coração sempre em revolta.

coração, quietinho... quietinho...
porque te insurges e blasfemas?
pschiu... não batas... devagarinho...
olha os soldados, as algemas!

Ao Longe os Barcos de Flores


(A Ovídio de Alpoim)

Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, grácil, na escuridão tranqüila,
- Perdida voz que de entre as mais se exila,
- Festões de som dissimulando a hora

Na orgia, ao longe, que em clarões cintila
E os lábios, branca, do carmim desflora...
Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, grácil, na escuridão tranquila.

E a orquestra? E os beijos? Tudo a noite, fora,
Cauta, detém. Só modulada trila
A flauta flébil... Quem há-de remi-la?
Quem sabe a dor que sem razão deplora?

Só, incessante, um som de flauta chora...

Caminho I


Tenho sonhos cruéis; nalma doente
Sinto um vago receio prematuro.
Vou a medo na aresta do futuro,
Embebido em saudades do presente...

Saudades desta dor que em vão procuro
Do peito afugentar bem rudemente,
Devendo, ao desmaiar sobre o poente,
Cobrir-me o coração dum véu escuro!...

Porque a dor, esta falta dharmonia,
Toda a luz desgrenhada que alumia
As almas doidamente, o céu dagora,

Sem ela o coração é quase nada:
Um sol onde expirasse a madrugada,
Porque é só madrugada quando chora.

Crepuscular


Há no ambiente um murmúrio de queixume,
De desejos de amor, dais comprimidos...
Uma ternura esparsa de balidos,
Sente-se esmorecer como um perfume.

As madressilvas murcham nos silvados
E o aroma que exalam pelo espaço,
Tem delíquios de gozo e de cansaço,
Nervosos, femininos, delicados.

Sentem-se espasmos, agonias dave,
Inapreensíveis, mínimas, serenas...
--- Tenho entre as mãos as tuas mãos pequenas,
O meu olhar no teu olhar suave.

As tuas mãos tão brancas danemia...
Os teus olhos tão meigos de tristeza...
--- É este enlanguescer da natureza,
Este vago sofrer do fim do dia.

Caminho II


Encontraste-me um dia no caminho
Em procura de quê, nem eu o sei.
--- Bom dia, companheiro --- te saudei,
Que a jornada é maior indo sozinho.

É longe, é muito longe, há muito espinho!
Paraste a repousar, eu descansei...
Na venda em que poisaste, onde poisei,
Bebemos cada um do mesmo vinho.

É no monte escabroso, solitário.
Corta os pés como a rocha dum calvário,
E queima como a areia!... Foi no entanto

Que chorámos a dor de cada um...
E o vinho em que choraste era comum:
Tivemos que beber do mesmo pranto.

Caminho III


Fez-nos bem, muito bem, esta demora:
Enrijou a coragem fatigada...
Eis os nossos bordões da caminhada,
Vai já rompendo o sol: vamos embora.

Este vinho, mais virgem do que a aurora,
Tão virgem não o temos na jornada...
Enchamos as cabaças: pela estrada,
Daqui inda este néctar avigora!...

Cada um por seu lado!... Eu vou sozinho,
Eu quero arrostar só todo o caminho,
Eu posso resistir à grande calma!...

Deixai-me chorar mais e beber mais,
perseguir doidamente os meus ideais,
E ter fé e sonhar --- encher a alma.