Carlos Soulié do Amaral

Soneto da Alegria


De nada, ou quase nada, uma alegria
Criar e permitir que nos aqueça
E acenda o vôo* e a voz da fantasia
Provando-se à exaustão adversa e avessa.

Uma alegria que dê fogo à fria
E brumosa jornada e não se esqueça
De transbordar, cravando-se travessa
E incontida, no coração do dia.

E que por ela os nossos corações
Se deixem, sem constrangimento, ser
E fluir, como fluem as canções,

Como fluem os rios, sem saber
Nem indagar as mil ou mais razões
De tudo quanto vive e vai morrer.

O livre na paisagem


Um gaturamo é mais nada
do que pássaro num ramo
de arbusto, de árvore, um
pássaro solto em plano
de ar, planando, voando
dono de si e suas asas.

Canta porque quer, pousa
onde quer e em sua pausa
toda liberdade é inverdade
porque ele a usa
sem sentido de ser
livre ou de querer.

Em verdade um gaturamo
só é pássaro num ramo
quando canta ou pia.
Então, mostra não ter amo
que não seja a alegria.
Tudo o mais nele é paisagem.
Folha ao ramo incorporada,
folha de árvore flanando,
folha no chão, semi-alada,
folha quieta entre folhagem,
no mais esta ave paisagem
é um gaturamo, mais nada.

Soneto Vaivém


Para Fernão Lara Mesquita


Das cercas, das paredes, da porta, do teto
e do chão frio, me desloco e desta hora
igual e coletiva escapo e vou direto
aonde a onda anda, pelo mar afora.

A conta, o livro, a regra, a rua, o lar, o veto,
o sim, o não, o cheque, o pão, o juro, a mora,
tudo é nada. Sem devoção e sem afeto,
eu vou por onde a onda anda, mar afora.

Além do céu e além do mais, pelo mar bravo
e alegre vou, colhendo estrelas com a mão,
entre perfumes de pitanga e sons de cravo

até que o telefone toca e tudo então
é novamente tudo e sou de novo escravo
do chão, da regra, da universal servidão.

Tragédia da monja


Incendiou-se a virilha da monja
a santa monja piedosa e pura.
O hábito que usava ela despiu
e do que era sem saber saiu
imaculada, ainda que em fervura.

Então, correndo pela capela
barroca e bela,
a monja atônita esculpiu pavor
na face de todos os santos
que não sentiam sua dor.

Em seu transe transbordado
ganhou o espaço do paço.
Nem mesmo invocou a Virgem,
nem mesmo invocou Jesus.

No ardente e pânico terror
das brasas que jamais imaginara,
a monja foi correndo, quase alada,
tombar, sem lérias e sem leros,
nos braços do poeta que sonhara
o pecado de tê-la como amada.

Deslumbrado, o poeta deslumbrou
a monja com os ímpetos mais feros,
cobrindo-a de calafrios
nas aras do altar de Eros.

Apagou-se então o incêndio
num susto de duplo mistério:
santa e vate se perderam
num embate de virilhas
entre ardores e arrepios
no paço do monastério:
santa e vate se encontraram
na história de maravilhas
de um conto que me contaram.

Espelho III


Enquanto nessa frente fria brilha
o peso do passado, o contratempo
do presente se torce numa trilha
sem saída aparente. E sem retorno.

Então é que  se faz urgente ver
de novo o que há de novo longe e fora
da fira frente, e mergulhar no forno
do dia, e incandescer todo o universo.

Se o que contempla não enxerga mais
em si o portal da lendas e aventuras,
há que entender o espelho de outro modo
e ser, do que se vê, o contrário, o inverso.