César Vallejo

LXXV Estais mortos


Estais mortos.
Que estranha maneira de estar mortos. Quem quer que seja diria que não o estais. Mas, na verdade, estais mortos.

Flutuais nadamente por trás dessa membrana que, pêndulo do zénite ao nadir, vem e vai de crepúsculo a crepúsculo, vibrando diante da sonora caixa de uma ferida que não vos dói. Digo-vos, pois, que a vida está no espelho, e que sois o original, a morte.

Enquanto a onda vai, enquanto a onda vem, quão impunemente se está morto. Só quando as águas se quebram, nas margens enfrentadas e se dobram e dobram, então transfigurai-vos e, julgando morrer, descobris a sexta corda que já não é vossa.

Estais mortos, não tendo nunca antes vivido. Quem quer que seja diria que, não sendo agora, fosses em outro tempo. Mas, em verdade, vós sois os cadáveres de uma vida que nunca foi. Triste destino. O não ter sido senão mortos sempre. O ser folha seca sem ter sido verde jamais.
Orfandade de orfandades.

E contudo, os mortos não são, não podem ser cadáveres de uma vida que ainda não viveram. Morreram sempre de vida.

Estais mortos.

Os mensageiros negros


Há golpes na vida, tão fortes... eu não sei!
Golpes como o ódio de Deus; como se ante eles,
a ressaca de todo o sofrido
se estagna na alma... eu não sei!

São poucos; mas são... abrem poças escuras
no rosto mais feio e no lombo mais forte,
serão talvez os potros de bárbaros atilas;
os mensageiros negros que nos manda a morte.

São as quedas fundas dos cristos da alma,
de alguma fé adorável que o destino blasfema.
Esses golpes sanguinolentos são as crepitações
de algum pão que na porta do forno nos queima.

E o homem... pobre....pobre! Volta os olhos, como
quando por sobre o ombro nos chama uma palmada;
Volta os olhos loucos, todo o vivido
estagna-se, como charco de culpa, no olhar.

Há golpes na vida, tão fortes... eu não sei!

Pedra preta sobre pedra branca


Morrerei em Paris com aguaceiro,
um dia do qual tenho já a lembrança.
Morrerei em Paris - e não me apresso -
talvez em uma quinta-feira, como é hoje, de outono.

Quinta-feira será, porque hoje, quinta, que proseio
estes versos, os úmeros hei posto
a mau e, jamais como hoje, hei voltado
com todo meu caminho, a ver-me só.

César Vallejo há morto, lhe batiam
todos sem que ele lhes faça nada
davam-lhe forte com um pau e duro

Também com uma corda, são testemunhos
os dias de quinta e os ossos úmeros,
a solidão, a chuva, os caminhos...

O pão nosso


Bebe-se o café da manhã...úmida terra
de cemitério cheira a sangue amado.
Cidade de inverno...A mordaz cruzada
de uma carreta que arrastar parece
uma emoção de jejum encadeada!

Quisera-se bater em todas as portas,
e perguntar por não sei quem, e logo
ver aos pobres, e, chorando quietos
dar pedacinhos de pão fresco a todos.
E saquear aos ricos seus vinhedos
com as duas mãos santas
que a um golpe de luz
voaram desencravadas da Cruz!

Pestana matinal, não vos levanteis!
O pão nosso de cada dia dá-nos,
Senhor...!

Todos os meus ossos são alheios
eu talvez os roubei!
Eu vim a dar-me o que acaso esteve
destinado para outro;
e penso que, se não houvesse nascido,
outro pobre tomasse este café!
Eu sou um mau ladrão...Aonde irei!

E nesta hora fria, em que a terra
transcende ao pó humano e é tão triste,
quisesse eu bater em todas as portas,
e suplicar a não sei quem, perdão,
e fazer-lhe pedacinhos de pão fresco
aqui, no forno de meu coração...!

VII DE TRILCE


Rumei sem novidade pela listrada rua
que eu cá sei. Tudo sem novidade,
deveras. E fundeei por coisas assim
e fui passado.

Dobrei a rua pela que raras
vezes se passa a bem, saída
heróica para a chaga daquela
esquina viva, nada por metade.

São os grandores,
o grito aquele, a claridade de acarear,
a barreta submersa em seu papel de
já!

Quando a rua está olheirenta de portas
e apregoa de descalços atris
adiar para amanhã as salvas pelos dobres.

Agora formigas ponteiros de minutos
adentram-se adoçadas, adormidas, pouco
dispostas, e se encolhem,
queimados os fogos, nos altos andares de em
1921.