Charles Bukowski

#lingua De Boi


eu não havia comido por alguns dias
e havia mencionado isso várias vezes
e havia chegado à casa daquele poeta
onde uma mulher minúscula tomava conta dele.
ele era um cara grande e barbado com um cérebro duas vezes o tamanho
do
mundo, e havíamos passado a noite toda sem dormir
escutando gravações, conversando, fumando, tomando pílulas.
sua mulher havia se deitado há horas.
eram 10 da manhã
e a luz do sol entrava sem ligar se não havíamos dormido
e quando vi
ele saía da cozinha
dizendo: "Hei, Chinaski! OLHE!"
não conseguia enxergar direito -
primeiro parecia uma bota amarela cheia d'água
e depois parecia um peixe sem cabeça
e depois parecia o caralho de um elefante,
e ele fez aquilo chegar mais perto:
"língua de boi! língua de boi!"
ele segurou com o braço estendido
bem na minha cara:
"LÍNGUA DE BOI! LÍNGUA DE BOI!"
e era, e eu nunca havia imaginado que a língua de um novilho fosse tão
grande e gorda,
havia sido um estupro,
haviam entrado fundo na garganta da criatura
e arrancado para fora, e estava ali agora:
"LÍNGUA DE BOI!"
e era amarela e rosada
e
a coisa se havia engasgado em si mesma
só mais uma atrocidade razoável e sensível
cometida por homens inteligentes.
eu não era um homem inteligente. eu
consegui chegar à pia e começaram as
náuseas.
estúpido, é claro, estúpido, era só carne morta,
sem sentir nada agora, a dor há tempos havia escorrido pelo fundo do
mundo
mas continuei a vomitar, terminei, limpei a pia
e voltei
"desculpe", eu disse
"tudo certo, esqueci sobre seu estômago."
então ele levou a língua de volta para a cozinha
e depois retornou à sala e conversamos sobre isso e aquilo
e em uns dez minutos
ouvi a água fervendo e senti o cheiro da língua a cozinhar
naquela água borbulhante sem boca ou olhos
ou nome, era uma língua enorme dando voltas e mais voltas
debaixo daquela tampa
e fedendo
tornando-se língua cozida
tornando-se mais deliciosa e aromática
mas como ele era um sujeito agradável
eu pedi para desligar aquilo por favor.
era uma manhã fria e senti calafrios junto à porta
enquanto me preparava para ir embora
o ar fresco era bom
eu podia sentir as pernas o coração os pulmões
começando a vislumbrar uma outra chance.
conversamos sobre um livro de poemas que ele me estava ajudando
a editar, então eu disse "até logo, vamos
ficar em contato", e não apertamos as mãos, algo que nenhum de nós
gostava de fazer
e subi pelo caminho até meu carro e dei partida
e enquanto esquentava imaginei-o voltando para
a cozinha por trás da massa de barba negra,
aqueles olhos de diamante azul brilhando no meio
de todo aquele cabelo negro
aqueles olhos de diamante azul inteligentes e felizes
sabendo tudo (quase), e então
acendendo novamente o fogo
a água começando a borbulhar e assobiar
a língua dando voltas lá dentro
mais uma vez.
e eu, estúpido em meu carro, afastei-me do
meio-fio, deixei-o rodar através da manhã amarela,
descendo pelas curvas e encostas,
todo aquele verde crescendo lindamente ao longo da beira
do caminho.
bem,
graças a Deus ele não me convidou para ficar para
jantar, quando cheguei em casa folheei algumas
reproduções de
Renoir, Pissarro e Diaz,
então comi um ovo
cozido.

“Texsun”


ela é do Texas e pesa
46 quilos
e fica parada diante do
espelho penteando fios e
mais fios de um cabelo avermelhado
que cai pelas
costas até a bunda.
o cabelo é mágico e dispara
faíscas e eu fico atirado na cama
e a observo penteando seu
cabelo. ela é como uma ninfa
de cinema mas ela está
realmente ali. fazemos amor
ao menos uma vez por dia e
ela consegue me fazer rir
com qualquer frase que decida
dizer. as mulheres do Texas sempre
foram absurdamente belas e
saudáveis, e além disso ela
limpou minha geladeira, minha pia,
o banheiro, e ela cozinha e me
serve comidas saudáveis
e lava os pratos ainda por
cima.
“Hank”, ela me disse,
segurando uma lata de suco de
toranja, “este é o melhor de
todos.”
a lata diz “Texsun – suco de toranja
rosa sem açúcar.”

ela tem o rosto que Katharine Hepburn
deve ter tido quando estava
na escola secundária, e eu olho aqueles
46 quilos
penteando quase um metro
de cintilante cabelo avermelhado
diante do espelho
e posso senti-la dentro dos meus
pulsos e atrás dos meus olhos,
e meus dedos dos pés e as pernas e a barriga
podem senti-la e
a outra parte também,
e Los Angeles toda desaba
e chora de alegria,
tremem as paredes dos salões do amor,
o mar vem com tudo e ela se vira
para mim e diz “que droga esse cabelo!”
e eu digo
“sim.”

$$$$$$


sempre tive problemas com
dinheiro.
num dos lugares em que trabalhei
todos comiam cachorro-quente
e batatas fritas
na cantina da empresa
3 dias antes de cada
pagamento.
eu queria uns bifes,
cheguei inclusive a procurar o gerente
da cantina e
exigir que ele servisse
uns bifes. ele se recusou.

Eu esqueci do dia do pagamento.
eu tinha um alto grau de indiferença e
o dia do pagamento chegava e todos
não falavam em outra
coisa.
“pagamento?” eu dizia, “diabo, hoje é dia de
receber? me esqueci de pegar meu
último cheque...”

“pare de falar merda, cara...”

“não, não, é sério...”

eu me erguia e ia até o caixa
e claro que o cheque estava lá
e na volta eu o mostrava
a todos eles. “Jesus Cristo, esqueci completamente
do negócio...”

por alguma razão isso os deixava
furiosos. então o funcionário do caixa
aparecia. eu tinha dois
cheques. “Jesus”, eu dizia, “dois cheques”.
e eles ficavam
furiosos.
alguns deles mantinham
dois empregos.

No pior dos dias
chovia pesadamente
eu não tinha uma capa de chuva então
vesti um velho casaco que eu não usava havia
meses e
cheguei um pouco atrasado
quando eles já estavam no batente.
procurei por cigarros nos bolsos
e num deles encontrei uma nota de
cinco dólares:
“ei, vejam”, eu disse, “acabo de encontrar cinco pratas
que eu não sabia que tinha, que
beleza”.

“ei, cara, não venha com essa
merda!”

“não, não, estou falando sério, de verdade, lembro
de ter vestido este casaco quando
estava bêbado e vagando de bar
em bar. já me tomaram dinheiro muitas vezes,
fiquei desconfiado... tiro o dinheiro da
minha carteira e o escondo em
outras partes.”

“sente de uma vez e comece a
trabalhar.”

meti a mão num bolso interno:
“ei, vejam, tem um VINTÃO aqui! Deus, não sabia
que tinha este VINTÃO!
estou
RICO!”

“ninguém está achando graça, seu
filho da puta...”

“ei, meu Deus, aqui tem mais OUTRA
de vinte! é muita, muita muita
grana... eu sabia que não tinha gasto todo o
dinheiro naquela noite. pensei que tinham me
levado os cobres outra vez...”

continuei vasculhando o
casaco. “ei, aqui tem uma de dez e
aqui mais um cinquinho! meu Deus...”

“escute, já disse pra você sentar
e calar a boca...”

“meu Deus, estou RICO... não preciso nem mais
deste emprego...”

“cara, senta aí...”

achei mais outra de dez depois que me sentei
mas não disse
nada.
podia sentir as ondas de ódio e
estava confuso,
eles achavam que eu tinha
armado toda aquela história
apenas para fazê-los se
sentirem mal. não era o que eu
queria. pessoas que tem que passar a cachorros-quentes e
batatas fritas por
3 dias antes de sair o pagamento
já se sentem mal o
suficiente.

sentei-me
inclinei-me para a frente e
comecei a
trabalhar.

do lado de fora
continuava
chovendo.

#junto A Uma Vitrine


cachorros e anjos não estão
muito distantes.
eu vou muito a esse lugarzinho
para comer
por volta das 2:30 da tarde
porque todas as pessoas que comem
lá são completamente sãs,
contentes por estarem simplesmente vivas e
comendo sua comida
junto a uma vitrine
que dá boas-vindas ao sol
mas não deixa os carros e
as calçadas entrarem.
atravessando a rua há um bar
chinês de striptease
aberto já às 2:30 da
tarde
está pintado de
um pobre e pálido
azul.
dão-nos quantos cafés
de graça pudermos tomar
e todos nos sentamos e bebemos em silêncio
o café preto e forte.
é bom poder ficar em algum lugar
em público às 2:30 da tarde
sem que lhe arranquem a carne
de seus ossos.
ninguém nos incomoda.
não incomodamos ninguém.
anjos e cachorros não estão
muito distantes
às 2:30 da tarde.
tenho minha mesa favorita
junto da janela
e depois de haver terminado
eu empilho os pratos, tigelas,
a xícara, Os talheres etc.
direitinho
em uma pilha bem arrumada -
minha oferenda à
garçonete idosa -
comida e tempo
íntegros,
e o sol desgraçado
lá fora
fazendo seu serviço
para cima e
para baixo.

#1


ah me perdoem Por quem os sinos dobram,
ah me perdoe Homem que andou sobre as águas,
ah me perdoe velhinha que morava num sapato,
ah me perdoe a montanha que rugia à meia-noite,
ah me perdoem os sons bobos da noite do dia e da morte,
ah me perdoe a morte da última bela pantera,
ah me perdoem todos os navios afundados e exércitos derrotados.
este é o meu primeiro POEMA EM FAX.
é tarde demais:
fui
conquistado.