Clarice Lispector

Precisão


O que me tranquiliza
é que tudo o que existe,
existe com uma precisão absoluta.
O que for do tamanho de uma cabeça de alfinete
não transborda nem uma fração de milímetro
além do tamanho de uma cabeça de alfinete.
Tudo o que existe é de uma grande exatidão.
Pena é que a maior parte do que existe
com essa exatidão
nos é tecnicamente invisível.
O bom é que a verdade chega a nós
como um sentido secreto das coisas.
Nós terminamos adivinhando, confusos,
a perfeição.

Meu Deus, me dê a Coragem


Meu Deus, me dê a coragem
de viver trezentos e sessenta e cinco dias e noites,
todos vazios de Tua presença.
Me dê a coragem de considerar esse vazio
como uma plenitude.
Faça com que eu seja a Tua amante humilde,
entrelaçada a Ti em êxtase.
Faça com que eu possa falar
com este vazio tremendo
e receber como resposta
o amor materno que nutre e embala.
Faça com que eu tenha a coragem de Te amar,
sem odiar as Tuas ofensas à minha alma e ao meu corpo.
Faça com que a solidão não me destrua.
Faça com que minha solidão me sirva de companhia.
Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar.
Faça com que eu saiba ficar com o nada
e mesmo assim me sentir
como se estivesse plena de tudo.
Receba em teus braços
o meu pecado de pensar.

(...)Pois em mim mesma eu


(...)Pois em mim mesma eu vi como é o inferno...(...) p. 143 (...) E porque minha alma é tão ilimitada que já não sou eu, e porque ela está tão além de mim - é que sempre sou remota a mim mesma, sou-me inalcançável como me é inalcançável um astro... (...) p. 146 (...) O mistério do destino humano é que somos fatais, mas temos a liberdade de cumprir ou não o nosso fatal: de nós depende realizarmos o nosso destino fatal... (...) mas de mim depende eu vir a ser o que fatalmente sou... p.148 (...) E não preciso sequer cuidar da minha alma, ela cuidará fatalmente de mim, e não tenho que fazer para mim mesma uma alma: tenho apenas que escolher viver. Somos livres, e este é o inferno. p. 148, ''Clarice Lispector, In: A Paixão Segundo GH, 5 ed. Rio de Janeiro, J. Oliympio 1977 páginas diversas'' *

(...) Ângela é doida. Mas


(...) Ângela é doida. Mas tem uma lógica matemática na sua doidice aparente. E se diverte muito a escandalosa. Aguça-se demais e depois não sabe o que fazer de si. Que se dane. Entre o

(...) tenho medo de dizer


(...) tenho medo de dizer porque no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo. (...) CL [Perto do coração selvagem] *

(...) Me lembro bem da


(...) Me lembro bem da carta que eu lhe escrevi, sobre deixar os outros em paz. Realmente o tom geral devia estar pessimista. O pessimismo passou, mas o bom propósito não: '''farei o possível para não amar demais as pessoas, sobretudo por causa das pessoas. Às vezes o amor que se dá pesa, quase como responsabilidade na pessoa que o recebe.''' Eu tenho essa tendência geral para exagerar, e resolvi tentar não exigir dos outros senão o mínimo. É uma forma de paz... Também é bom porque em geral se pode ajudar muito mais as pessoas quando não se está cega pelo amor. (...)

(...) Atravessei a rua e


(...) Atravessei a rua e tomei um táxi. A '''brisa''' arrepiava-me os cabelos da nuca. E eu estava tão feliz que me encolho no canto do táxi de medo porque a felicidade dói. E isto tudo causado pela visão do homem bonito. Eu continuava a não querê-lo para mim – gosto é de pessoas um pouco feias e ao mesmo tempo harmoniosas, mas ele de certo modo dera-me muito com o sorriso de camaradagem entre pessoas que se entendem. Tudo isso eu não entendia. :A coragem de viver: deixo oculto o que preciso ser oculto e precisa irradiar-se em segredo. Calo-me. (...) Clarice Lispector, ''in: Água Viva, Círculo do Livro, 1973 p. 76-7'' *