Donizete Galvão

Almanaque da Pedra


Roupa branca no quarador:
enxágue-a com pedra anil.

Afta no canto da boca:
mate-a com pedra-ume.

Água de bica na talha:
jogue-lhe pedra de enxofre.

Faca com corte cego:
amole-a com pedra branca.

Dedo de prosa com craca:
raspe-o com pedra-pomes.

Anil


Pedra tocada por Yves Klein,

em que borda do poço

se perdeu?

Em que veio de mina

ficou incrustada?

Por que a pálpebra se fechou

quando deveria estar aberta?

Por que não foi feita

a pergunta certa?

Onde o mantra

que faz surgir Tara,

caminhando hierática

sobre a muralha?

Em que noite adormeci verde

e acordei Saara?

Diante de Uma Fotografia


Para Celso Alves Cruz
O Tietê não é o Neva.
E nada no Curtume
lembra a sua Peter.
Galpões de fábricas
estendem-se sem rigor,
sem história ou forma.
Sucessão de chaminés,
caos de telhas de zinco.

Este é o lugar da cadela esquálida,
dos trens que gemem no subúrbio,
dos peões vestidos de azul e graxa,
dormindo ao meio-dia na calçada.
Na fila do almoço, o rebanho todo
estende suas bandejas de plástico.
Há fuligem nas janelas, nos olhos,
na sola dos sapatos. Nos cérebros.

Anna, as sereias do Báltico
não cantam aqui suas cantigas.
No mar das impossibilidades,
deixaram-me uma fotografia.
Vejo você - estrangeiríssima.
A curta franja dos cabelos.
O nariz forte. O desenho da boca.
A mão pousada no pescoço
que Modigliani um dia desenhou.
E no olhar felino, cinza-claro,
pressinto paixão e dor contida.

Anna Ahkmátova.
poeta de nome inventado,
lança sobre mim o claro raio
dos teus olhos líquidos,
para que minha alma não vire pedra.
Não quero morrer de sede,
sem ouvir a voz da língua.

Deus do Deserto


um deus de pedra

de cerne

inoxidável

um deus de ferro

pontiagudo

um deus que brota da fronte

de puro cristal

deus de concreto

asséptico

deus que não pune

deus que não salva

Anel Caucasiano


Olha para o anel de ferro

e mantém acesa a lembrança.

Lembra-te dos dez mil anos

no miolo escuro do rochedo.

Lembra-te, depois, da visitante

e do barulho de suas asas.

Lembra-te da humilhação

de revelar o que era segredo.

Lembra-te de tudo

antes que todos se esqueçam dessa história

e, mero acidente geográfico,

reste apenas a montanha de pedra.