Dora Ferreira da Silva

Boneca


A boneca de feltro
parece assustada com o próximo milênio.
Quem a aninhará nos braços
com seus olhos de medo e retrós?

O signo da boneca é frágil
mais frágil que o de pássaro.
Confia. Assim passiva
o vento brincará contigo
franzirá teu avental
dirá coisas que entendes
desde a aurora das coisas:
foste um caroço de manga
uma forma de nuvem
ou um galho com braços
de ameixeira no quintal.

Não temas. Solta o
corpo de feltro. Assim.
Para ser embalada nos braços
da menina que houver.

Elegia dos Golfinhos


Viu (porque só ver podia)
sem interferir: eles feriam
o cardume denso dos golfinhos, armadura azulada
protegendo atuns. Eram estes o alvo cobiçado
para as latarias de consumo. Tudo servia
aos velhacos: matemática, um navio branco
— noivo da Morte —, redes atiradas
em círculo perfeito e nefasto perto do cardume.
Tiros ecoavam no ar, encapelando
a ordem bela dos golfinhos no caos turbilhonante.
Aprisionados, eles se contorciam em desespero.

Lamentem-se os coros sagrados de Netuno
acorram Nereidas, Anfitrite em lágrimas com
seus cavalos marinhos em torno das malévolas mandalas
de redes sobre o mar. Ó Nova Idade, não vês tantas
formas desfeitas, não vês que o rei Midas
tudo transforma agora no ouro do negócio?
Os golfinhos tranqüilos começam a morder.
Ah, cascata iridiscente no limiar da morte
em dança fúnebre! É o anti-Cristo no coração dos homens,
o usurpador, o peixe voltado para a esquerda, involutivo.

Mercância vil contaminando cabeças
e corações! Vociferem as pitonisas
de cabelos soltos, pálpebras emaciadas!
São os golfinhos os novos educadores
com sua graça natural, com sua dança
que a morte não detém. Eles propõem música.

Agora


Agora que no vagar dos pensamentos
chamo-te - pai - da estação da infancia
como se pudesses voltar no rápido só para me embalar,
fecho os olhos dentro de tuas pálpebras.
És minha invenção de amor. Olhos melancólicos
os teus. Eu contigo em degredo.

Difícil tocar a face desse segredo cada vez mais longe
e partir e também ficar, embora encontrada a chave
[da porta mais secreta.
Se eu pudesse dizer: seja a paisagem de seda azul
e o último sol fortíssimo do ocaso
- eu liberta enfim de tuas pupilas.
Um rio passaria desenhado pela mão mais fina. Passa uma
[pluma apenas uma
no rio acordado.

Alguém


Alguém desfecha a flecha do vôo:
reflexo no vidro onde a chuva
penteia os cabelos.
Cantiva de muitas lágrimas
dos suspiros do vento
nesta casa pousada na montanha
aguardo criança flor anjo ou passaro.
Pensamentos alígeros - andorinhas
nos aguaceiros de verão
traçam oblíquas, desaparecem
no céu que escurece.
Abraçada à minha alma
não sinto o tempo latejar por perto.
O incerto longe é a minha vocação.
O longe do longe onde talvez
estás sempre em despedida
do invólucro que não te retém. E eu
sempre atrás do aceno teu
do aroma que te esquece e se esvai.
Se um lenço de fino linho
se desprendesse de teus dedos (sonho meu)
o caçaria como a um pássaro
que longe vivia
e me pertencia.

Habitas meu coração




Habitas meu coração: barbas de rei assírio
olhar de extensões alheias a tempo e medidas.
Tua voz tem asas de falcão e pousa
nas torres mais altas do meu ser onde jamais
me aventurei. É minha a tua solidão.
Sirvo-me em silêncio e às vezes como uma
criança me apertas em teu peito: acaricio
então tua face estranho rei.
Outras vezes ouço passos ecoando no
enlace das colunas em seteiras escadas. Se
grito teu nome - és mil ressonâncias e seu eco em mim.