Pedra de Fecho
Sobre o presente escrevo. Raspo
a caliça do invólucro, tento
atingir o cerne emparedado.
Sobe até mim a esperança de supor
que serei ininteligível
aos leitores do futuro.
Penso que acreditarão mórbida
a minha "fantasia". Não poderão
entender este gosto de saliva
e veneno; esta floração
de artérias abertas sob a raiva.
Pensarão: "Que pavores o povoaram?
Como acreditar na falta de saúde
do tempo que descreve? Aceitaremos
este emissário da dor, este vazio
febril das mãos que estende?
Entre o papel e a luz escrevo
das moedas do agora. Pressagio
que não entenderão, que não serão
raros braços a arder os clarões na noite.
O Fósforo na Palha
Aos meus olhos
a cidade organiza
a sua tristeza.
Uma cintura aperta
a asfixia.
Um furo mais.
Um riso eleva-se
e sou eu que rio
sou eu que amo.
Auxilio a cidade
a suportar.
Um furo menos.
Não há pedras bastantes
para o nosso túmulo.
Cadernos de Poesia
Difícil é esperar
quando nada sabemos
nada haver a esperar.
O eco de uma lágrima não basta
para dar vento à sementeira
Os Vegetantes
Continuam aqui
roendo as unhas!
Substituem as unhas por poemas
(ou cafés, futebol, anedotário)
e estilhaçam espelhos que na luz
ao seu devolvem a cruel imagem.
Vidrado limo o rosto
de rugas sem memória
assistem à vida como um filme:
disparar sobre a tela é proibido
e além do mais inútil.
Curvam ao solo os ombros
escorjados; curvam-nos para
duradouras urtigas, seixos
sem horizontes, epitáfios
de lama, dezembros, poeira fria.
Se chovem as esperanças não acorrem
a apanhá-las na boca ao ar aberto.
Tijolo articulado a língua balbucia
"É a vida!". Sementes violadas
não germinam.
Em vão os bombardeiros os oráculos
com agulhas de sangue. Nada tentam
para vida à fala que utilizam,
ao país do cansaço que entre dentes
ressaca.
E fazem do amor essa triste umidade,
um delíquio formal logo amortalhado.
São dóceis, cibernéticos,
dia a dia premiados
de alguns gramas a mais
no chumbo do pescoço.
Noticias do Bloqueio
Aproveito a tua neutralidade,
o teu rosto oval, a tua beleza clara,
para enviar notícias do bloqueio
aos que no continente esperam ansiosos.
Tu lhes dirás do coração o que sofremos
nos dias que embranquecem os cabelos...
Tu lhes dirás a comoção e as palavras
que prendemos — contrabando — aos teus cabelos.
Tu lhes dirás o nosso ódio construído,
sustentando a defesa à nossa volta
— único acolchoado para a noite
florescida de fome e de tristezas.
Tua neutralidade passará
por sobre a barreira alfandegária
e a tua mala levará fotografias,
um mapa, duas cartas, uma lágrima...
Dirás como trabalhamos em silêncio,
como comemos silêncio, bebemos
silêncio, nadamos e morremos
feridos do silêncio duro e violento.
Vai pois e noticia com um archote
aos que encontrares de fora das muralhas
o mundo em que nos vemos, poesia
massacrada e medos à ilharga.
Vai pois e conta nos jornais diários
ou escreve com ácido nas paredes
o que viste, o que sabes, o que eu disse
entre dois bombardeamentos já esperados.
Mas diz-lhes que se mantém indevassável
e segredo das torres que nos erguem,
e suspensa delas uma flor em lume
grita o seu nome incandescente e puro.
Diz-lhes que se resiste na cidade
desfigurada por feridas de granadas
e enquanto a água e os viveres escasseiam
aumenta a raiva
e a esperança reproduz-se.