Eugénio de Andrade

Passamos pelas coisas sem as ver


Passamos pelas coisas sem as ver,
gastos, como animais envelhecidos:
se alguém chama por nós não respondemos,
se alguém nos pede amor não estremecemos,
como frutos de sombra sem sabor,
vamos caindo ao chão, apodrecidos.

Entre os teus lábios


Entre os teus lábios
é que a loucura acode,
desce à garganta,
invade a água.

No teu peito
é que o pólen do fogo
se junta à nascente,
alastra na sombra.

Nos teus flancos
é que a fonte começa
a ser rio de abelhas,
rumor de tigre.

Da cintura aos joelhos
é que a areia queima,
o sol é secreto,
cego o silêncio.

Deita-te comigo.
Ilumina meus vidros.
Entre lábios e lábios
toda a música é minha.

Hoje roubei todas as rosas dos jardins


Hoje roubei todas as rosas dos jardins
e cheguei ao pé de ti de mãos vazias.

Devias estar aqui rente aos meus lábios


Devias estar aqui rente aos meus lábios
para dividir contigo esta amargura
dos meus dias partidos um a um

- Eu vi a terra limpa no teu rosto,
Só no teu rosto e nunca em mais nenhum

Sê paciente; espera


Sê paciente; espera
que a palavra amadureça
e se desprenda como um fruto
ao passar o vento que a mereça.

Foi para ti que criei as rosas


Foi para ti que criei as rosas.
Foi para ti que lhes dei perfume.
Para ti rasguei ribeiros
e dei ás romãs a cor do lume.

Sê tu a palavra


1.
Sê tu a palavra,
branca rosa brava.

2.
Só o desejo é matinal.

3.
Poupar o coração
é permitir à morte
coroar-se de alegria.

4.
Morre
de ter ousado
na água amar o fogo.

5.
Beber-te a sede e partir
- eu sou de tão longe.

6.
Da chama à espada
o caminho é solitário.

7.
Que me quereis,
se me não dais
o que é tão meu?

Procura a maravilha


Procura a maravilha.

Onde um beijo sabe
a barcos e bruma.

No brilho redondo
e jovem dos joelhos.

Na noite inclinada
de melancolia.

Procura.

Procura a maravilha.

A boca


A boca,

onde o fogo
de um verão
muito antigo

cintila,

a boca espera

(que pode uma boca
esperar
senão outra boca?)

espera o ardor
do vento
para ser ave,

e cantar.

Ainda sabemos cantar


Ainda sabemos cantar,
só a nossa voz é que mudou:
somos agora mais lentos,
mais amargos,
e um novo gesto é igual ao que passou.

Um verso já não é a maravilha,
um corpo já não é a plenitude.

Levar-te à boca


Levar-te à boca,
beber a água
mais funda do teu ser -

se a luz é tanta,
como se pode morrer?

De palavra em palavra


De palavra em palavra
a noite sobe
aos ramos mais altos

e canta
o êxtase do dia.

Húmido de beijos e de lágrimas


Húmido de beijos e de lágrimas,
ardor da terra com sabor a mar,
o teu corpo perdia-se no meu.

(Vontade de ser barco ou de cantar.)

Diz homem, diz criança, diz estrela


Diz homem, diz criança, diz estrela.
Repete as sílabas
onde a luz é feliz e se demora.

Volta a dizer: homem, mulher, criança.
Onde a beleza é mais nova.

Música, levai-me


Música, levai-me:

Onde estão as barcas?
Onde são as ilhas?

Colhe todo o oiro


Colhe
todo o oiro do dia
na haste mais alta
da melancolia.

Eram de longe


Eram de longe.
Do mar traziam
o que é do mar: doçura
e ardor nos olhos fatigados.

Nunca o verão se demorara


Nunca o verão se demorara
assim nos lábios
e na água
- como podíamos morrer,
tão próximos
e nus e inocentes?

É na escura folhagem do sono


É na escura folhagem do sono
que brilha
a pele molhada,
a difícil floração da língua.

À breve, azul cantilena


À breve, azul cantilena
dos teus olhos quando anoitecem.

A raiz do linho


A raiz do linho
foi meu alimento,
foi o meu tormento.

Mas então cantava.

Ah, falemos da brisa


Eu dizia:
"Nenhuma brisa é triste"
e procurava água,lábios,
um corpo
onde a solidão fosse impossível.
 
Mas quem sabe dessa música
cativa nos meus dedos?
E depois, como guardar um beijo.
mar doirado ou sombra
desolada?
 
Recordava um rio,
álamos,
o sabor nupcial da chuva,
tropeçava em lágrimas e soluços
e lágrimas, e procurava.
 
Como quem se despe
para amar a madrugada nas areias,
eu dizia: " Nenhuma brisa é triste,
triste", e procurava.
 
E procurava.

ARTE DE NAVEGAR


Vê como o verão 
subitamente 
se faz água no teu peito, 

e a noite se faz barco, 

e a minha mão marinheiro. 


de Obscuro Domínio

A independência tem um preço,


A independência tem um preço, sempre o soube, e nunca me recusei a pagá-lo.

A arte da poesia requer


A arte da poesia requer uma aguda consciência do idioma, e isso é ocupação que baste a uma vida inteira.

A infância, no poeta, jamais


A infância, no poeta, jamais se extingue. Talvez por isso eles sejam tão vulneráveis, os poetas.