Fernando Guimarães

A Posse


Que súbita suspeita — dália enorme —
passara como a sombra nos teus cílios,
se a manhã chega enquanto de nós foge
o tempo que já tinha destruído.

Um rosto sobre o peito o que escutava?
A canção, um contorno de mamilos
breve, se erguida a curva nas espáduas
era o desejo, e calma, largos rios.

Cabelos desgrenhados, fugitivos,
e vento não havia, ou quase chama
nos rins, na pele, um cancro que consome

este pecado casto, e já os lábios
se fecham, quando rápida ou mais funda
em nós cresceu a ferida dos sentidos.

Poema


Vem esconder dentro de mim,
onde o teu ser a medo principia,
a longa curva sem rosto ou fim
de uma harmonia

que não escutes mas
fique suspensa como uma fonte:
— desenho nu feito das
linhas da tarde e do horizonte…

ACERCA DE UMA ARANHA


O que se pode dizer? Falemos da sua leveza, dessa espécie de gesto
que a sustenta no ar. Permanece sozinha, para que se encontre
a si mesma. À sua frente estão múltiplos caminhos, mas escolhe
apenas um. Ela procura o centro de qualquer coisa. Aí fica
à espera, atenta como nós quando lemos um livro. Talvez esteja perto
daquilo que há muito se ignorava, de um segredo que a teia
lhe pode revelar quando estremece. Solta-se dela um fio
maior para que a luz venha ao seu encontro. Oscila um pouco
e afasta-se lentamente. É outra a página que se lê agora.

Página


Principiamos a ler. O rosto inclina-se. Ainda separadas,
algumas das letras estremeceram. Tudo aquilo que se sente
é a respiração que fica à sua volta. O ar destina-se às palavras
e também ao silêncio. A luz que chega pode explicar-nos
melhor o que se passa. Os olhos sabem-no. Daí a pressa
com que se aproximaram dela, até se tornar o que se leu
mais nosso. Depois repousamos um pouco. Uma das mãos
estende-se e vai ao encontro de outra página. Esta será maior.

COROAÇÃO DA VIRGEM DE STEFANIO DA VENEZIA


Quem são aqueles que ficam ali reunidos e se submetem
a esta ordem que é a da pintura? Estão sentados. Há filas onde avultam
os rostos cercados pela luz. Podemos dizer que é um trono este lugar
onde descai uma das mãos para o que nos era oferecido? Tudo
o que se espera há-de ficar abrigado por um manto. Encontraremos
finalmente aquilo que se pode ainda receber. Dois rostos
inclinam-se e tornam-se maiores. À sua frente estava suspensa
uma coroa. O seu brilho aproxima-se para não ser diferente
do que se vê todos os dias ao amanhecer. Ela vinha ocupar o centro
deste espaço que se fecha agora em si mesmo. Num dos lados
dispunham-se algumas palavras que podiam ser lidas. No outro, alguém
continuava ajoelhado. A imobilidade permite encontrar outros caminhos.