Glauco Mattoso

Bélico, 1999


As armas, munições, armazenadas
são muitas vezes mais suficientes
para extinguir da Terra seus viventes,
e continuam sendo fabricadas.

Revólveres, canhões, fuzis, granadas,
torpedos, mísseis mis, bombas potentes,
festim, balas Dum Dum, cartuchos, pentes,
martelos, foices, paus, facões, enxadas.

Romanos, que eram bons de guerra e paz,
disseram: "Si vis pacem, para bellum.":
Parece que os modernos vão atrás.

Não quero exagerar no paralelo,
mas quanto menos ronda a bota faz,
mais folga ostentará o pé de chinelo.


In: MATTOSO, Glauco. Geléia de rococó: sonetos barrocos. São Paulo: Ciência do Acidente, 1999

Ao Maior, 1999


Maior é o sentimento que o sentido.
Maior é a solidão do que a saudade.
Maior é a precisão do que a vontade.
Maior é Deus, segundo o desvalido.

Maior é o sabichão do que o sabido.
Maior é a servidão que a majestade.
Maior é o masoquismo do que Sade.
Maior é o meu poeta preferido.

Quem faz muito soneto, cedo ou tarde
acaba produzindo uma obra-prima,
contanto que não faça muito alarde.

Por trás da mera métrica ou da rima
esconde-se a coragem do covarde
e o medo, que jamais me desanima.


In: MATTOSO, Glauco. Paulisseia ilhada: sonetos tópicos. São Paulo: Ciência do Acidente, 1999

Confessional, 1999


Amar, amei. Não sei se fui amado,
pois declarei amor a quem odiara
e a quem amei jamais mostrei a cara,
de medo de me ver posto de lado.

Ainda odeio quem me tem odiado:
devolvo agora aquilo que declara.
Mas quem amei não volta, e a dor não sara.
Não sobra nem a crença no passado.

Palavra voa, escrito permanece,
garante o adágio vindo do latim.
Escrito é que nem ódio, só envelhece.

Se serve de consolo, seja assim:
Amor nunca se esquece, é que nem prece.
Tomara, pois, que alguém reze por mim...


In: MATTOSO, Glauco. Geléia de rococó: sonetos barrocos. São Paulo: Ciência do Acidente, 1999

Cor Local, 1978


(trova semi(patri)ótica)

Minha terra tem mais terra
minha fome tem mais cores
minha cor que menos berra
é que sente minhas dores


In: MATTOSO, Glauco. Línguas na papa: uma salada dos mais insípidos aos mais picantes poemas de Glauco Mattoso. São Paulo: Pindaiba, 1982.

NOTA: Citação do poema "Canto do Regresso à Pátria", do livro PAU-BRASIL (1925), de Oswald de Andrade. Paródia da "Canção do Exílio", do livro PRIMEIROS CANTOS (1846), de Gonçalves Dia

Cansioneiro, 1977


viramundo vaila estrada violeiro
barravento ventania travessia disparada
arrastão veleiro saveiro jangadeiro canoeiro
caminhemos caminhando caminhada

andança chegança ponteio boiadeiro
berimbau arueira aruanda enluarada
opinião louvação cantador cirandeiro
banda sarabanda porta-estandarte batucada

incerteza insensatez inquietação
fracasso palhaço jurei errei sofri
antonico tico-tico maracangalha construção

rosa roda ronda bodas baby zambi
cadência decadência aquarela conceição
adalgisa amélia aurora irene geni


In: MATTOSO, Glauco. Memórias de um pueteiro: as melhores gozações de Glauco Mattoso. Rio de Janeiro: Ed. Trote, 1982. Poema integrante da série Sonettos Intalianos & Sonetos Ingreses