Golgona Anghel

Abro a porta


Abro a porta.
Olho constantemente para o mapa
mas já não me lembro para onde queria ir.
Podia ficar aqui,
enquanto a noite respira nas janelas embaciadas.
Os móveis apagam-me os passos
em ângulos cegos
e, nessas sombras do incerto,
deixo que o cansaço me tire a peruca da paciência
assim como a noite nos tira a roupa
antes de dormir.

Isolado num cantinho da boca entreaberta,
o teu sorriso
vai contribuindo para o genocídio dos camarões
que o vinho branco torna sempre menos sangrento.
Poderia, de facto, ficar aqui
enquanto desapareces, por fim, num sono sem importância.

Vou esvaziando os copos
e começo a compilar beijos,
como quem junta, à pressa, moedas caídas pelo chão:
somos todas putas, rapaz,
com ou sem vodka.

Antigamente os bisontes eram gente


Antigamente os bisontes eram gente
e namoravam as raparigas
mais bonitas da aldeia. 
Os judeus tinham cauda e
os homens menstruavam duas vezes por mês. 

Ninguém se queixava de nada.
Tudo tinha o seu lugar. 
Líamos Tolstoi num Skoda, 
Hölderlin num Trabant descapotável,
Joyce num Aston Martin,
Camões num UMM.

As grandes emoções
vinham de palavras longas:
australopitecos, jerusalamaleques,
extremaunçãoparaumapernadepau, etc. 
Isto explica tanta coisa, 
mas não vem nos livros de história. 
A história faz apenas ecoar o passado. 
Como um búzio.
O passado é o lugar onde os nossos ex
se juntam aos mamutes, à Céline Dion
e ao Windows XP.

Aos Sábados repousava


Aos Sábados repousava:
instalava-me no lugar mais cómodo
da minha cultura ocidental,
de cachimbo num quadro de época,
e levantava com o olhar
as rolas passeabundas da marquise.

Nos intervalos,
cultivava em pequenos parágrafos,
ao lado de couves-flor à sombra dum ginjal,
a história universal
do jeito como andas pela sala,
Adélia, Rosa-Maria, Lulú,
toda feita de rendas, toda gazes e veludos,
toda cheia de recantos africanos,
penas e cheiros, paisagens com garrafas,
pretos e pelicanos,
savanas e leopardos, minas gerais,
anéis e diamantes,
casas de campo em Vigo, Barcelona, Abrantes,
toda feita contas em dólares nos bancos da Suíça,
vistos para Estados Unidos,
minha fufa, minha farofa com linguiça,
toda Armani,
toda Gucci,
toda despida nos filmes de Mizoguchi.
À mesma hora,
na sala de microfilmes da Torre do Tombo,
uma turma de dez alunos curiosos
desfia o pergaminho do meu cancioneiro pessoal
num aparato crítico fundamental:
Filho de mãe incógnita,
fruto de um amor irregular,
(toma nota e vê lá se aprendes):
Carlos Fradique Mendes.

Comodista hesitante,


Comodista hesitante,
protegido das cabeleireiras
e cliente frequente dos feriados nacionais,
acredita nos encontros fortuitos
assim como um relógio estragado
acredita  aproximar-se de uma hora astral.
Estes hábitos podem até ser tolerados
em contos naturalistas
e reality showers.

Nós, aqui, little stranger,
degolamos pardais e fadas de porcelana.
Cobramos interesses à alegria
e vendemos suites com piscina na lua.
A batalha é nossa,
já alugámos as trincheiras,
mas custa tanto tirar os pijamas.

Conheci o Sandy na esquina do talho


Conheci o Sandy na esquina do talho,
no Largo do Calvário,
Tinha o carro mal estacionado.

Estivemos depois juntos na China,
Durante a invasão japonesa;
e em França, no despontar da Segunda Guerra Mundial

No Vietname, habitámos a mesma galeria escura.
Passávamos a vida a classificar ruídos e
a medir com os pés
o crescimento do arroz.

Quando Boccacio desvia no Decameron
os sintomas da peste,
nós estávamos em Veneza a queimar em grandes piras
os tártaros abatidos pela doença.

Às vezes ouvem-se cães a ladrar,
às vezes é tarde e o tempo se torna circular,
a felicidade deixa então de fazer parte
do nosso sistema solar.

Mas o Sandy está calmo e ponderado.
Se não tivesse problemas de asma,
fumaria cachimbo.

Uma tarde, numa esplanada
Com vista para o passado que não passa,
no Jardim do Príncipe Real para ser mais exacto –
disse mantenham-se vivos,
façam isso por Michael Jackson.