Hélia Correia

Esmola


I
Lançai‑me
uma palavra, como alguns
atiram côdea aos cães.
Uma palavra
que, embrulhada nesse cuspo
que vos escorre pelos queixos,
brilha
e desconcerta a própria
repugnância.
Sacudi‑a
de vós, tal como alguém
sacode a lama seca do sapato
sem perceber sequer que lama é
porque não tira os pés
do alcatrão.
Essa palavra abandonada à porta,
eu a recolherei, como se houvesse
nela um pedido,
a súplica de um órfão,
de uma cria deixada para
morrer.
Eu pegarei nessa palavra ao colo
e, não sabendo onde encontrar abrigo
nem alimento,
dormirei com ela,
ouvindo‑a
murmurar,
enquanto os bosques
vão crepitando e a cinza
nos recobre.

II

Mas entregai uma qualquer palavra,
dessas que tanto desprezais,
ao meu cuidado.
Uma palavra, por exemplo,
sobre a qual
ninguém se incline já
porque a confunde
com uma pedra do caminho
ou um excremento,
tão insignificante
se tornou.
Oh, que estranho é pensar que elas tiveram,
até, reis como servos, as palavras.
Pensar que elas passavam pelos séculos
com o seu corpo musical, tão frágil
e tão convocador de tempestades.
Essas pequenas criaturas transparentes,
sem peso, com alguma vocação
para a malignidade, pois não têm
nem sombra nem reflexo,
e dos seus dedos
desce a grande beleza do terrível
e a grande redenção
que há no poema

III


Pequenas, misteriosas criaturas
que não nascem do mundo natural,
que são obra dos homens,
sendo os homens a obra delas,
vejo‑as
hoje mais do que escorraçadas:
submetidas.
Elas que eram solenes e risonhas,
tanto mais necessárias quanto inúteis,
e tanto mais inúteis quanto pura
exaltação do texto, essas palavras
rolam humildemente pelo chão.
Deixai, deixai cair uma palavra,
e outra, e outra,
os ossos do banquete,
para que me roje e as apanhe com a boca,
sendo eu menos
do que mendiga,
menos do que cadela,
sendo eu menos do que um bicho
com fome:
sendo a fome.

1.


Para quê, perguntou ele, para que servem
Os poetas em tempo de indigência?
Dois séculos corridos sobre a hora
Em que foi escrita esta meia linha,
Não a hora do anjo, não: a hora
Em que o luar, no monte emudecido,
Fulgurou tão desesperadamente
Que uma antiga substância, essa beleza
Que podia tocar-se num recesso
Da poeirenta estrada, no terror
Das cadelas nocturnas, na contínua
Perturbação, morada da alegria;

2.


Essa beleza que era também espanto
Pelo dom da palavra e pelo seu uso
Que erguia e abatia, levantava
E abatia outra vez, deixando sempre
Um rasto extraordinário. Sim, a hora,
Dois séculos antes, em que uma ausência
E o seu grande silêncio cintilaram
Sobre a mão do poeta, em despedida.

23.


A terceira miséria é esta, a de hoje.
A de quem já não ouve nem pergunta.
A de quem não recorda. E, ao contrário
Do orgulhoso Péricles, se torna
Num entre os mais, num entre os que se entregam,
Nos que vão misturar-se como um líquido
Num líquido maior, perdida a forma,
Desfeita em pó a estátua.

7.


Nós, os ateus, nós, os monoteístas,
Nós, os que reduzimos a beleza
A pequenas tarefas, nós, os pobres
Adornados, os pobres confortáveis,
Os que a si mesmos se vigarizavam
Olhando para cima, para as torres,
Supondo que as podiam habitar,
Glória das águias que nem águias tem,
Sofremos, sim, de idêntica indigência,
Da ruína da Grécia.