Ilka Brunhilde Laurito
Carta Enigmática
Amado, se encontrares sobre tua mesa de trabalho
um coração flechado com as iniciais da minha mágoa,
não me culpes, não: foi uma criança a quem emprestei um
canivete enferrujado.
E se o correio te entregar este envelope sem local e data
com uma clave de sol sobre uma ausência em pauta,
não creias que fui eu que silenciei sereias
que já não sabem atrair para longínquas ilhas.
A tua possibilidade musical é um desperdício.
Compõe ao menos um poema concretista
em que desgastes requintes de tipografia
contra o pudor de ser como eu, só lírico.
Eu te decifro.
Ou me devoras, meu querido,
como me tens devorado dia a dia
sem ter fome de mim.
Ora, direis, mas que mulher ridícula.
Ela é capaz de rodar um disco-voador na sua vitrola
e não consegue fixar uma flor nas suas raízes.
Tudo tão natural, tão simples.
O telefone, o som estereofônico, o ultra-som
(e as telecotecomunicações?)...
Ai, deflagro a minha dor no ardor da bateria
— amante-batucada sem amor-passista
é o meu apelido.
Mas rescindiram o meu contrato
(será que foste tu um dos jurados?).
(...)
1968
Publicado no livro Janela de apartamento (1968).
In: LAURITO, Ilka Brunhilde. Sal do lírico: antologia poética. São Paulo: Quíron, 1978. p.69. (Sélesis, 13
2
Ilka Brunhilde Laurito
Comunhão
Já que me sinto muito digna
de me assentar à tua mesa,
não quero migalhas, não,
eu quero o pão inteiro.
Tu e eu, massa e fermento
em ávido silêncio:
casca e miolo,
o bolo
e o seu recheio
Vem.
Estende os lençóis sobre esta
mesa
com cheiro de suor e de
alfazema.
E vamos trabalhar a noite
e o seu levedo
com as mãos,
a boca,
o corpo aceso,
para que a aurora nos en-
tregue,
ainda quentes,
as últimas fatias de amor
amanhecente
com gosto de café, de leite
e de manteiga.
Poema integrante da série Oficina Passionária.
In: LAURITO, Ilka Brunhilde. Canteiro de obras. São Paulo: Edicon: J. Scortecci, 1985. (Aldebarã)
3
Ilka Brunhilde Laurito
O anjo magoado
Que foi dele
depois que lhe quebraram as asas?
Que foi dele
depois que lhe contaram
que no seu ombro havia carne?
Parou tristonho de voar.
E olhou estupefato para os pássaros.
Só viu as próprias lágrimas
e acreditou que o espaço se houvera transformado em aquário.
E pôs-se a nadar rumo a pátria.
Pensava: "Que largo mar seco de praias!"
E em volta de si mesmo esvoaçava os braços
num esboço de viagem.
Então mirou-se
no último olhar de poça dagua
e descobriu seu rosto
pálido
lavado
com algumas gotas de suor e orvalho.
Vestiu tremendo o corpo claro
sentiu pudor de sua nudez de asas.
Procurou por todo o espaço
perscrutou a enxurrada.
Pensou: Ah, elas sim reconquistaram as aves".
E ancorou seu pranto na saudade.
4
Ilka Brunhilde Laurito
Autobiografia de Mãos Dadas
"Qual uma criança desmamada sobre o seio de
sua mãe, qual uma criança desmamada está a
minha alma para comigo" — Salmo 131
Madreminha, dócil madreminha,
dá-me tuas mãos
agora és tão menina.
Cada ano que passa vais diminuindo
e eu vou ficando cada vez maior na tua saudade.
Vem comigo. É a minha hora de guiar-te.
Tu esqueceste o caminho quando em mim passaste.
Eu passo agora elucidando o olvido.
Madre, a vida é simples chão difícil.
Estamos num árduo labirinto
de uma saída livre e múltiplas esquinas.
Mas já não há perigo.
Eu te dirijo
com minha bússola instruída
imantada nas estrelas que jorraram das feridas
quando o céu da infância desabou de mim.
Mãe: cresci.
Tu, sim, ficaste sempre ingênua, arisca, intuitiva.
Madremenina. Madrefilha.
Não me ensinaste a ler porque não lias.
Mas na cartilha em que aprendeste a rir
soletraste em minha origem
as palavras vitais de tua ciência: alegria, pureza, infância, vento;
e me deste o empirismo das flores, dos astros, do silêncio;
e me agitaste nas veias o ritmo das coisas e dos seres.
(...)
Madreminha, eu sei: a vida é perfumada por espinhos.
Sabes disso. Já o sabias
quando calçando os pés com meu cilício
alfombraste de aroma o que doía em meu ritmo.
Madre: já não há que imunizar meus olhos de sua vista.
Agora eu sei como ela é
assustadoramente bela a vida:
alegre na periferia de sua polpa triste.
Sabes disso. Já o sabias
quando acariciaste meu sopro de cruz em teus ouvidos
e devolveste em cantiga o que te dei em grito.
(...)
(...)
Madre: ouves-me? E reconheces em meu canto a tua agonia?
É minha vida. Inédita, exclusiva, a minha vida.
Ela gritou quando calei em ti
e agora a angústia é minha.
Mas que digo? Oh madre-sensitiva, a angústia é minha?
Mas são teus olhos que eu pressinto
duas fontes de sangue, rubro rio
transbordando em meu rosto com delírio
ao sorver esta secura ardente de meu riso
e a canção adusta nas feições tranquilas.
(...)
Tímida-mãe-poesia:
nunca tiveste essa ousadia
de verter em canto teus sonambulismos
ou de lançar ao vento como desafio
uma orquestra de êxtases cadentes.
Mãe, eu tive.
Por isso tu sorris
quase com medo desta filha
que descobriu em teu organismo
uma latência de revolta lírica.
Estavas tão só com o teu silêncio
e essa fervente ânsia de explodir-te.
Bati à tua porta e disse: Eis-me aqui. Eu te redimo agora.
Dorme.
(...)
Imagem - 00660001
Publicado no livro Autobiografia de mãos dadas (1958).
In: LAURITO, Ilka Brunhilde. Sal do lírico: antologia poética. São Paulo: Quíron, 1978. p.78-82. (Sélesis, 13
5
Ilka Brunhilde Laurito
Publicidade
Proibido colocar cartazes:
em chão
parede
poste.
(Em homem:
pode.)
1963
Poema integrante da série Inéditos, 1971/1977.
In: LAURITO, Ilka Brunhilde. Sal do lírico: antologia poética. São Paulo: Quíron, 1978. p.31. (Sélesis, 13
6
Ilka Brunhilde Laurito
V [Canto ao arrumar a cama
Canto ao arrumar a cama,
canto
diligente verônica
oficiando os passos
da paixão cotidiana.
Exibo ao meu espelho atônito
os lençóis que estampam o corpo
do senhor que nunca me salvou
da crucificação no pranto.
E canto porque canto,
sem esperanças de glória
ou de ressurreição.
Poema integrante da série Suíte Doméstica.
In: LAURITO, Ilka Brunhilde. Canteiro de obras. São Paulo: Edicon: J. Scortecci, 1985. (Aldebarã)
7
Ilka Brunhilde Laurito
VIII [Olhos que tacteais este poema
Olhos que tacteais este poema
como instruídos dedos
sobre as nervuras do espalmar
do texto,
olhos, lúcidos parceiros
da voz alinhavada em letras,
a luz que vos guia o íntimo
passeio,
cegos videntes,
é a que decifra os gestos desta
mão
que fala e canta
imprimindo as rugas do seu
críptico desenho
na lisa pele do papel em branco.
Leitor,
meu quiroamante.
Poema integrante da série Máquina de Escrever.
In: LAURITO, Ilka Brunhilde. Canteiro de obras. São Paulo: Edicon: J. Scortecci, 1985. (Aldebarã)
8
Ilka Brunhilde Laurito
X [Meu amado não é servo nem é rei
Meu amado não é servo nem é rei,
é transeunte do cotidiano, que se move onde estou eu.
Tem uma cabeça, tensa de sonho e pensamento,
que inventa o que haveria de ser
e sabe o que lembrar e o que esquecer.
Os cabelos encanecem aos ventos crespos,
são fios nervosos que perscrutam a dor dos tempos
e só se alisam na trégua entre meus dedos.
Ele me olha atentamente
decifrando a epiderme de secreta pele.
Seu olho é azul, castanho, verde ou negro?
Só sei que a cor que mora dentro deles
é a luz solar em que me aqueço.
O rosto grave, que em sorrisos se mascara,
eu o cubro de ternuras como as espumas que lhe tocam
a barba.
A boca tem sabor de menta e de cigarro:
é o gosto da palavra que engulo no seu hálito
quando entre nós o beijo cala o vão diálogo.
As mãos são grandes, ásperas e cálidas, mãos operárias
no manejo exato da máquina e do lápis,
talvez da arma em tempos mais precários,
da flor capazes nas horas amoráveis.
Sua voz é morna e calma,
em mim ela se grava como em clave de carne o som do
amor em brasa.
O tronco é arquitetura eficiente para erguer um homem
acima do pó e das sarjetas.
Nele se agitam os braços na maré presente
e correm os pés no encalço de melhores ventos
e é destro o sexo em exercício de ancestral silêncio.
No corpo inteiro, sangue, músculos e nervos.
O resto, poros, pele, pelos.
Ele não é esbelto como o cedro ou outra espécie de
madeira:
é de matéria carnal, com dobras, curvaturas, rugas,
franzimentos,
e sua altura se flexiona humanamente.
Ele tem sombra, pois o sol é dele.
Eis seu retrato, ó filhas da cidade: olhai como eu o vejo.
Poema integrante da série Solo Urbano para um Cântico dos Cânticos.
In: LAURITO, Ilka Brunhilde. Canteiro de obras. São Paulo: Edicon: J. Scortecci, 1985. (Aldebarã)
9
Ilka Brunhilde Laurito
Folclírica 3
O mundo tem
entrada e saída.
Eu:
estou de visita.
(Quem pôs
a vassoura
atrás da porta
do invisível?)
1975
Poema integrante da série Inéditos, 1971/1977.
In: LAURITO, Ilka Brunhilde. Sal do lírico: antologia poética. São Paulo: Quíron, 1978. p.111. (Sélesis, 13
10
Ilka Brunhilde Laurito
Manha(ã)
O recém-nascido
chora de madrugada
seu choro alto.
Também o dia
recém-saído
de seu parto
dói a vida
no grito
anunciador
dos galos.
E se entreouvem
(a criança e a alvorada)
e pois que participam
da mesma hora clara
de reinventar a luz
na carne do mundo
e das criaturas
repartem irmãmente
a voz dúplice
da
noite.
Mas feita a escolha,
cabe à criança o silêncio,
e o seu avesso
à manhã que vai nascer
inaugurando inda uma vez
a criação dos sons
e o secreto mudar
da sombra em sol.
Agora,
a criança
dorme:
— O dia
acorda.
E sobre
o sono mudo
do filho do homem
debruça
o véu da aurora
e a canção de ninar
da noite
morta.
1975
Poema integrante da série Inéditos, 1971/1977.
In: LAURITO, Ilka Brunhilde. Sal do lírico: antologia poética. São Paulo: Quíron, 1978. p.96-97. (Sélesis, 13
11
Ilka Brunhilde Laurito
Ciranda dos Meninos da Cidade Grande
Senhora Dona Sancha
coberta de ouro e prata
que anjos são esses
que andam rodeando
pelas ruas da cidade
dia e noite noite e dia
padre-nosso! ave-maria!?...
É o anjo-fujão-de-casa
que veio de circo em circo
andando no trem de carga
ou no aéreo porta-mala.
É o anjo-luz-dos-sapatos
(vai graxa negra, patrão?)
ajoelhado aos pés do homem
que é quem lhe deve perdão.
É o anjo-da-guarda-dos-carros
pastor de ovelhas de lata
assobiando na flauta
da sua garganta asmática.
É o anjo-do-amendoim
(nem um pouco afrodisíaco)
fugindo ao rapa do fisco,
ao seu medo e à sua anemia.
(...)
É o anjo-torto-e-raquítico
apodrecendo faminto
e amamentando na esquina
com leite de mãe menina.
É o anjo-dos-restaurantes
catando as migalhas das mesas
onde os problemas do mundo
naufragam em mar de cerveja.
É o anjo-da-rosa-noturna
vendendo aos noivos que riem
o aroma sem cor de seu mundo
e a murcha flor de sua vida.
É o anjo-carregador
chupando a laranja podre
que cai do excessivo cesto
da despesa das patroas.
(...)
É o anjo-rei-dos-mendigos,
filho de mãe postiça
orfão de pai foragido
adotivo do Juizado.
É o anjo-do-sexo-triste
herdeiro da tara e sífilis
no seu promíscuo exercício
nos quatro cantos das ruas.
É o anjo-das-negras-nuvens
que saem da boca do vício
puxando o sonho proibido
do ópio que o faz mais livre.
É o anjo-assaltante-franzino,
o corpo atrás do revólver,
matando o ódio do amor
em cada tiro assassino.
Senhora Dona Sancha
dê seu ouro dê sua prata
que estes anjos não são anjos
são os filhos da cidade
— nossos filhos, mãe de asfalto —
rodeando dia e noite noite e dia
sem pai nosso! e sem maria.
1975
Imagem - 00660002
Poema integrante da série Inéditos, 1971/1977.
In: LAURITO, Ilka Brunhilde. Sal do lírico: antologia poética. São Paulo: Quíron, 1978. p.36-38. (Sélesis, 13
12
Ilka Brunhilde Laurito