Jaroslav Seifert

Retrato molhado


Aqueles dias lindos
quando a cidade parece um dado, um hino, um ventilador
ou uma concha de vieira à beira-mar
– tchau, tchau, belas garotas,
nos conhecemos hoje
e não nos veremos nunca mais.
Os domingos lindos
quando a cidade parece um futebol, um cartão e uma ocarina
ou um sino indo e vindo
– na rua ensolarada
as sombras dos passantes se beijavam
e eles seguiam, completos desconhecidos.
Aquelas noites lindas
quando a cidade parece uma rosa, um tabuleiro de xadrez, um violino
ou uma garota chorando
– no bar jogávamos dominó, dominó de bolas pretas, com as garotas magrelas,
olhando para seus joelhos
que eram esquálidos
feito dois crânios com as coroas de seda das cinta-ligas
no reino desesperado do amor.
(tradução de Marília Garcia).

Vi apenas uma vez


Vi apenas uma vez
um sol tão ensanguentado.
E nunca mais
Descia funesto sobre o horizonte
e parecia
que alguém havia escancarado as portas do inferno.
Perguntei pelo observatório astronômico
e hoje sei o porquê.
O inferno, conhecemos: está em toda parte
e caminha sobre duas pernas.
E o paraíso?
Talvez o paraíso nada mais seja
além de um sorriso
por muito tempo esperado
e lábios
que murmuram o nosso nome.
E aquele frágil instante fabuloso
quando depressa podemos esquecer-nos
do inferno.
(tradução de Aleksandar Jovanovic)