João Cabral de Melo Neto
Tecendo a Manhã
1.
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
2.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.
Publicado no livro A educação pela pedra (1966).
In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.345. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira
2
João Cabral de Melo Neto
Rios sem Discurso
A Gabino Alejandro Carriedo
Quando um rio corta, corta-se de vez
o discurso-rio de água que ele fazia;
cortado, a água se quebra em pedaços,
em poços de água, em água paralítica.
Em situação de poço, a água equivale
a uma palavra em situação dicionária:
isolada, estanque no poço dela mesma,
e porque assim estanque, estancada;
e mais: porque assim estancada, muda,
e muda porque com nenhuma comunica,
porque cortou-se a sintaxe desse rio,
o fio de água por que ele discorria.
*
O curso de um rio, seu discurso-rio,
chega raramente a se reatar de vez;
um rio precisa de muito fio de água
para refazer o fio antigo que o fez.
Salvo a grandiloquência de uma cheia
lhe impondo interina outra linguagem,
um rio precisa de muita água em fios
para que todos os poços se enfrasem:
se reatando, de um para outro poço,
em frases curtas, então frase e frase,
até a sentença-rio do discurso único
em que se tem voz a seca ele combate.
Publicado no livro A educação pela pedra (1966).
In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.350-351. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira
3
João Cabral de Melo Neto
A Educação pela Pedra
Uma educação pela pedra: por lições;
para aprender da pedra, frequentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada;
a de poética, sua carnadura concreta;
a de economia, seu adensar-se compacta:
lições da pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la.
Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
e se lecionasse, não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
uma pedra de nascença, entranha a alma.
Publicado no livro A educação pela pedra (1966).
In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.338. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira
4
João Cabral de Melo Neto
O Engenheiro
A Antônio B. Baltar
A luz, o sol, o ar livre
envolvem o sonho do engenheiro.
O engenheiro sonha coisas claras:
superfícies, tênis, um copo de água.
O lápis, o esquadro, o papel;
o desenho, o projeto, o número:
o engenheiro pensa o mundo justo,
mundo que nenhum véu encobre.
(Em certas tardes nós subíamos
ao edifício. A cidade diária,
como um jornal que todos liam,
ganhava um pulmão de cimento e vidro).
A água, o vento, a claridade
de um lado o rio, no alto as nuvens,
situavam na natureza o edifício
crescendo de suas forças simples.
Publicado no livro O engenheiro (1945).
In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.69-70. Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira)
5
João Cabral de Melo Neto
A Mulher e a Casa
Tua sedução é menos
de mulher do que de casa:
pois vem de como é por dentro
ou por detrás da fachada.
Mesmo quando ela possui
tua plácida elegância,
esse teu reboco claro,
riso franco de varandas,
uma casa não é nunca
só para ser contemplada;
melhor: somente por dentro
é possível contemplá-la.
Seduz pelo que é dentro,
ou será, quando se abra;
pelo que pode ser dentro
de suas paredes fechadas;
pelo que dentro fizeram
com seus vazios, com o nada;
pelos espaços de dentro,
não pelo que dentro guarda;
pelos espaços de dentro:
seus recintos, suas áreas,
organizando-se dentro
em corredores e salas,
os quais sugerindo ao homem
estâncias aconchegadas,
paredes bem revestidas
ou recessos bons de cavas,
exercem sobre esse homem
efeito igual ao que causas:
a vontade de corrê-la
por dentro, de visitá-la.
Publicado no livro Quaderna (1960).
In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.241-242. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira
6
João Cabral de Melo Neto
Descoberta da Literatura
No dia-a-dia do engenho,
toda a semana, durante,
cochichavam-me em segredo:
saiu um novo romance.
E da feira do domingo
me traziam conspirantes
para que os lesse e explicasse
um romance de barbante.
Sentados na roda morta
de um carro de boi, sem jante,
ouviam o folheto guenzo ,
a seu leitor semelhante,
com as peripécias de espanto
preditas pelos feirantes.
Embora as coisas contadas
e todo o mirabolante,
em nada ou pouco variassem
nos crimes, no amor, nos lances,
e soassem como sabidas
de outros folhetos migrantes,
a tensão era tão densa,
subia tão alarmante,
que o leitor que lia aquilo
como puro alto-falante,
e, sem querer, imantara
todos ali, circunstantes,
receava que confundissem
o de perto com o distante,
o ali com o espaço mágico,
seu franzino com o gigante,
e que o acabassem tomando
pelo autor imaginante
ou tivesse que afrontar
as brabezas do brigante.
(E acabaria, não fossem
contar tudo à Casa-grande:
na moita morta do engenho,
um filho-engenho, perante
cassacos do eito e de tudo,
se estava dando ao desplante
de ler letra analfabeta
de curumba, no caçanje
próprio dos cegos de feira,
muitas vezes meliantes. )
7
João Cabral de Melo Neto
Pescadores Pernambucanos
A Rubem Braga
Onde o Goitá vai mais parado
e onde nunca passa nada;
onde o Goitá vai tão parado
que nem mesmo ele rio passa,
um pescador, numa redoma
dessas em que sempre se instalam,
espera um peixe: e tão parado
que nem sequer roça a vidraça.
Mas não está parado
por estar na emboscada:
não é ele quem pesca,
a despeito da vara:
mais bem, é ele a pesca,
e a pose represada
é para não fugir
de algum peixe em que caia.
----------
No mangue lama ou lama mangue,
difícil dizer-se o que é,
entre a espessura nada casta
que se entreabre morna, mulher,
pé ante pé, persegue um peixe
um pescador de jereré,
mergulhando o jereré, sempre,
quando já o que era não é.
Contudo, continua
sem se deter sequer:
fazer e refazer
fazem um só mister;
e ele se refaz, sempre,
a perseguir, até
que tudo haja fugido
ao passo de seu pé.
----------
Qualquer pescador de tarrafa
arremessando a rede langue
dá a sensação que vai pescar
o mundo inteiro nesse lance;
e o vôo espalmado da rede,
planando lento sobre o mangue,
senão o mundo, os alagados,
dá a sensação mesmo que abrange.
Depois, pouco se vê:
como, ao chumbo tirante,
se transforma em profundo
o que era extenso, antes;
vê-se é como o profundo
dá pouco, de relance:
se muito, uma traíra
do imenso circunstante.
----------
Aproveitando-se da noite
(não é bem um pescador, este)
coloca o covo e vai embora:
que sozinho se pesque o peixe;
coloca o covo na gamboa
e se vai, enxuto e terrestre:
mais tarde virá levantá-lo,
quando o bacurau o desperte.
Não é um pescador
aquele que não preze
o fino instante exato
em que o peixe se pesque;
este abandona o covo
e vai, sem interesse:
nem de fazer a pesca
nem de vê-la fazer-se.
Imagem - 00730007
Publicado no livro Terceira feira (1961). Poema integrante da série Serial.
In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.312-314. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira
8
João Cabral de Melo Neto
Paisagem pelo Telefone
Sempre que no telefone
me falavas, eu diria
que falavas de uma sala
toda de luz invadida,
sala que pelas janelas,
duzentas, se oferecia
a alguma manhã de praia,
mais manhã porque marinha,
a alguma manhã de praia
no prumo do meio-dia,
meio-dia mineral
de uma praia nordestina,
Nordeste de Pernambuco,
onde as manhãs são mais limpas,
Pernambuco do Recife,
de Piedade, de Olinda,
sempre povoado de velas,
brancas, ao sol estendidas,
de jangadas, que são velas
mais brancas porque salinas,
que, como muros caiados
possuem luz intestina,
pois não é o sol que as veste
e tampouco as ilumina,
mais bem, somente as desveste
de toda sombra ou neblina,
deixando que livres brilhem
os cristais que dentro tinham.
Pois, assim, no telefone
tua voz me parecia
como se de tal manhã
estivesse envolvida,
fresca e clara, como se
telefonasses despida,
ou, se vestida, somente
de roupa de banho, mínima,
e que por mínima, pouco
de tua luz própria tira,
e até mais, quando falavas
no telefone, eu diria
que estavas de todo nua,
só de teu banho vestida,
que é quando tu estás mais clara
pois a água nada embacia,
sim, como o sol sobre a cal
seis estrofes mais acima,
a água clara não te acende:
libera a luz que já tinhas.
Publicado no livro Quaderna (1960).
In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa. Org. Marly de Oliveira.
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.225-227.
(Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira)
9
João Cabral de Melo Neto
Graciliano Ramos:
Falo somente com o que falo:
com as mesmas vinte palavras
girando ao redor do sol
que as limpa do que não é faca:
de toda uma crosta viscosa,
resto de janta abaianada,
que fica na lâmina e cega
seu gosto da cicatriz clara.
***
Falo somente do que falo:
do seco e de suas paisagens,
Nordestes, debaixo de um sol
ali do mais quente vinagre:
que reduz tudo ao espinhaço,
cresta o simplesmente folhagem,
folha prolixa, folharada,
onde possa esconder-se a fraude.
***
Falo somente por quem falo:
por quem existe nesses climas
condicionados pelo sol,
pelo gavião e outras rapinas:
e onde estão os solos inertes
de tantas condições caatinga
em que só cabe cultivar
o que é sinônimo da míngua.
***
Falo somente para quem falo:
quem padece sono de morto
e precisa um despertador
acre, como o sol sobre o olho:
que é quando o sol é estridente,
a contrapelo, imperioso,
e bate nas pálpebras como
se bate numa porta a socos.
Publicado no livro Terceira feira (1961). Poema integrante da série Serial.
In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.311-312. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira
10
João Cabral de Melo Neto
Menino de Engenho
A cana cortada é uma foice.
Cortada num ângulo agudo,
ganha o gume afiado da foice
que a corta em foice, um dar-se mútuo.
Menino, o gume de uma cana
cortou-me ao quase de cegar-me,
e uma cicatriz, que não guardo,
soube dentro de mim guardar-se.
A cicatriz não tenho mais;
o inoculado, tenho ainda;
nunca soube é se o inoculado
(então) é vírus ou vacina.
Publicado no livro A escola das facas (1980).
In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.417-418. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira
11
João Cabral de Melo Neto
O Sertanejo Falando
A fala a nível do sertanejo engana:
as palavras dele vêm, como rebuçadas
(palavras confeito, pílula), na glace
de uma entonação lisa, de adocicada.
Enquanto que sob ela, dura e endurece
o caroço de pedra, a amêndoa pétrea,
dessa árvore pedrenta (o sertanejo)
incapaz de não se expressar em pedra.
2.
Daí porque o sertanejo fala pouco:
as palavras de pedra ulceram a boca
e no idioma pedra se fala doloroso;
o natural desse idioma fala à força.
Daí também porque ele fala devagar:
tem de pegar as palavras com cuidado,
confeitá-las na língua, rebuçá-las;
pois toma tempo todo esse trabalho.
Publicado no livro A educação pela pedra (1966)
In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.335-336. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira
12
João Cabral de Melo Neto
O Mar e o Canavial
O que o mar sim aprende do canavial:
a elocução horizontal de seu verso;
a geórgica de cordel, ininterrupta,
narrada em voz e silêncio paralelos.
O que o mar não aprende do canavial:
a veemência passional da preamar;
a mão-de-pilão das ondas na areia,
moída e miúda, pilada do que pilar.
*
O que o canavial sim aprende do mar:
o avançar em linha rasteira da onda;
o espraiar-se minucioso, de líquido,
alagando cova a cova onde se alonga.
O que o canavial não aprende do mar:
o desmedido do derramar-se da cana;
o comedimento do latifúndio do mar,
que menos lastradamente se derrama.
Publicado no livro A educação pela pedra (1966).
In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio deJaneiro: Nova Aguilar, 1994. p.335. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira
13
João Cabral de Melo Neto
Fábula de um Arquiteto
A arquitetura como construir portas,
de abrir; ou como construir o aberto;
construir, não como ilhar e prender,
nem construir como fechar secretos;
construir portas abertas, em portas;
casas exclusivamente portas e teto.
O arquiteto: o que abre para o homem
(tudo se sanearia desde casas abertas)
portas por-onde, jamais portas-contra;
por onde, livres: ar luz razão certa.
Até que, tantos livres o amedrontando,
renegou dar a viver no claro e aberto.
Onde vãos de abrir, ele foi amurando
opacos de fechar; onde vidro, concreto;
até refechar o homem: na capela útero,
com confortos de matriz, outra vez feto.
Publicado no livro A educação pela pedra (1966).
In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.345-346. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira
14
João Cabral de Melo Neto
A Escola das Facas
O alísio ao chegar ao Nordeste
baixa em coqueirais, canaviais;
cursando as folhas laminadas,
se afia em peixeiras, punhais.
Por isso, sobrevoada a Mata,
suas mãos, antes fêmeas, redondas,
ganham a fome e o dente da faca
com que sobrevoa outras zonas.
O coqueiro e a cana lhe ensinam,
sem pedra-mó, mas faca a faca,
como voar o Agreste e o Sertão:
mão cortante e desembainhada.
Publicado no livro A escola das facas (1980).
In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.429. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira
15
João Cabral de Melo Neto
Duplicidade do Tempo
O níquel, o alumínio, o estanho,
e outros assépticos elementos,
ao fim se corrompem: o tempo
injeta em cada um seu veneno.
A merda, o lixo, o corpo podre,
os humores, vivos dejetos,
não se corrompem mais: o tempo
seca-os ao fim, com mil cautérios.
16
João Cabral de Melo Neto
Ademir da Guia
Ademir impõe com seu jogo
o ritmo do chumbo (e o peso),
da lesma, da câmara lenta,
do homem dentro do pesadelo.
Ritmo líquido se infiltrando
no adversário, grosso, de dentro,
impondo-lhe o que ele deseja,
mandando nele, apodrecendo-o.
Ritmo morno, de andar na areia,
de água doente de alagados,
entorpecendo e então atando
o mais irrequieto adversário.
Publicado no livro Museu de tudo (1975).
In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.383. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira
17
João Cabral de Melo Neto
O Sol no Senegal
Para quem no Recife
se fez à beira-mar,
o mar é aquilo de onde
se vê o sol saltar.
Daqui, se vê o sol
não nascer, se enterrar:
sem molas, alegria,
quase murcho, lunar;
um sol nonagenário
no fim da circular,
abúlico, incapaz
de um limpo suicidar.
Aqui, deixa-se manso
corroer, naufragar;
não salta como nasce:
se desmancha no mar.
Publicado no livro Museu de tudo (1975).
In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.387-388. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira
18
João Cabral de Melo Neto
O Vento no Carnaval
Não se vê no canavial
nenhuma planta com nome,
nenhuma planta maria,
planta com nome de homem.
É anônimo o canavial,
sem feições, como a campina;
é como um mar sem navios,
papel em branco de escrita.
É como um grande lençol
sem dobras e sem bainha;
penugem de moça ao sol,
roupa lavada estendida.
Contudo há no canavial
oculta fisionomia:
como em pulso de relógio
há possível melodia,
ou como de um avião
a paisagem se organiza,
ou há finos desenhos nas
pedras da praça vazia.
Se venta no canavial
estendido sob o sol
seu tecido inanimado
faz-se sensível lençol,
se muda em bandeira viva,
de cor verde sobre verde,
com estrelas verdes que
no verde nascem, se perdem.
Não lembra o canavial
então, as praças vazias:
não tem, como têm as pedras,
disciplina de milícias.
É solta sua simetria:
como a das ondas na areia
ou as ondas da multidão
lutando na praça cheia.
Então, é da praça cheia
que o canavial é a imagem:
vêem-se as mesmas correntes
que se fazem e desfazem,
voragens que se desatam,
redemoinhos iguais,
estrelas iguais àquelas
que o povo na praça faz.
Publicado no livro Duas águas: poemas reunidos (1956). Poema integrante da série Paisagens com Figuras.
In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.150-151. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira
19
João Cabral de Melo Neto
Os Vazios do Homem
Os vazios do homem não sentem ao nada
do vazio qualquer: do do casaco vazio,
do da saca vazia (que não ficam de pé
quando vazios, ou o homem com vazios);
os vazios do homem sentem a um cheio
de uma coisa que inchasse já inchada;
ou ao que deve sentir, quando cheia,
uma saca: todavia não, qualquer saca.
Os vazios do homem, esse vazio cheio,
não sentem ao que uma saca de tijolos,
uma saca de rebites; nem têm o pulso
que bate numa de sementes, de ovos.
2.
Os vazios do homem, ainda que sintam
a uma plenitude (gora mas presença)
contêm nadas, contêm apenas vazios:
o que a esponja, vazia quando plena;
incham do que a esponja, de ar vazio,
e dela copiam certamente a estrutura:
toda em grutas ou em gotas de vazio,
postas em cachos de bolha, de não-uva.
Esse cheio vazio sente ao que uma saca
mas cheia de esponjas cheias de vazio;
os vazios do homem ou o vazio inchado:
ou vazio que inchou por estar vazio.
Publicado no livro A educação pela pedra (1966).
In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.359-360. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira
20
João Cabral de Melo Neto
O Retirante Explica ao Leitor Quem é e a Que Vai
— O meu nome é Severino,
não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria;
como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.
Mas isso ainda diz pouco:
há muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.
Como então dizer quem fala
ora a Vossas Senhorias?
Vejamos: é o Severino
da Maria do Zacarias,
lá da serra da Costela,
limites da Paraíba.
Mas isso ainda diz pouco:
se ao menos mais cinco havia
com nome de Severino
filhos de tantas Marias
mulheres de outros tantos,
já finados, Zacarias,
vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu vivia.
Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas,
e iguais também porque o sangue
que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).
Somos muitos Severinos
iguais em tudo e na sina:
a de abrandar estas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,
a de querer arrancar
algum roçado da cinza.
Mas, para que me conheçam
melhor Vossas Senhorias
e melhor possam seguir
a história de minha vida,
passo a ser o Severino
que em vossa presença emigra.
Imagem - 00730001
Publicado no livro Duas águas: poemas reunidos (1956). Poema integrante da série Morte e Vida Severina.
In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.171-172. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira
21
João Cabral de Melo Neto
Meu Álcool
Marques Rabelo garantia
que bêbado era quem bebia
por se inventar duplo motivo:
sentir-se invivo ou sobrevivo.
Querer-se lúcido, acordar,
ser todo o agudo que nele há,
ser quando está de todo aceso,
tem o ser na ponta dos dedos.
Ou estar num ser tão extreme
que ser é insuportavelmente,
que ser é estar-se num incêndio
e sentir-se esse incêndio sendo.
Por isso, é que o bêbado bebe:
porque triste quer ser alegre,
e bebe porque chega a demais
a alegria de que ele é capaz.
2
Um pôde achar álcool melhor,
não tóxico, sem qualquer depois,
um álcool que não tem veneno
nem contém amanhãs de inferno.
Que, se é preciso, apaga o incêndio
e se é preciso, vem e acende-o;
um álcool que possui duas pontas,
que age a favor como age contra,
nem precisa que alguém lhe diga
quando dar mais ou menos vida
(como lâmpada do escritor russo,
põe o quarto aceso ou escuro).
Mais: que não se bebe, contempla;
é um álcool para a convivência,
álcool que dá a chama e o sopro
com tê-lo ao alcance do corpo.
3
Esse álcool não é de vender:
ninguém engarrafou um ser.
É álcool sem quandos, sem ondes,
de perto, ou pelo telefone.
Vê-lo e usá-lo foi de imediato:
depois de álcoois mais variados,
da familiar cana de cana
de suas várzeas pernambucanas,
viajou por outros tão diversos
(os de Appolinaire, o dos versos)
que até empregou como bebida
o fluido ambíguo de Sevilha.
E de nenhum deles renega:
nem das úlceras que eles legam
nem da intestina homorragia
em hospitais ao fio da vida.
3
Se a um novo álcool se entregou,
se o vê como álcool superior,
não foi por causa de conselho,
prescrição de médico, ou medo.
É que no novo álccol de agora
pode alcançar mais alta quota
de álcool na vida, e é mais contínua
a vida que acende, e seu clima:
um clima mais claro, e tão limpo
como toalha ou lençol de linho,
e ao mesmo tempo tão intenso
de um ser vivo vivendo pleno.
(E isso, só, com a convivência
de mulher, com a nua presença
de mulher, que como Sevilha
é interna-externa, é noitedia.)
22
João Cabral de Melo Neto
Num Monumento à Aspirina
Claramente: o mais prático dos sóis,
o sol de um comprimido de aspirina:
de emprego fácil, portátil e barato,
compacto de sol na lápide sucinta.
Principalmente porque, sol artificial,
que nada limita a funcionar de dia,
que a noite não expulsa, cada noite,
sol imune às leis da meteorologia,
a toda hora em que se necessita dele
levanta e vem (sempre num claro dia):
acende, para secar a aniagem da alma,
quará-la, em linhos de um meio-dia.
*
Convergem: a aparência e os efeitos
da lente do comprimido de aspirina:
o acabamento esmerado desse cristal,
polido a esmeril e repolido a lima,
prefigura o clima onde ele faz viver
e o cartesiano de tudo nesse clima.
De outro lado, porque lente interna,
de uso interno, por detrás da retina,
não serve exclusivamente para o olho
a lente, ou o comprimido de aspirina:
ela reenfoca, para o corpo inteiro,
o borroso de ao redor, e o reafina.
Publicado no livro A educação pela pedra (1966).
In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.360-361. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira
23
João Cabral de Melo Neto
O Artista Inconfessável
Fazer o que seja é inútil.
Não fazer nada é inútil.
Mas entre fazer e não fazer
mais vale o inútil do fazer.
Mas não, fazer para esquecer
que é inútil: nunca o esquecer.
Mas fazer o inútil sabendo
que ele é inútil e que seu sentido
não será sequer pressentido,
fazer: porque ele é mais difícil
do que não fazer, e dificilmente se poderá dizer
com mais desdém, ou então dizer
mais direto ao leitor Ninguém
que o feito o foi para ninguém.
24
João Cabral de Melo Neto
O Cão Sem Plumas
I. Paisagem do Capibaribe
A cidade é passada pelo rio
como uma rua
é passada por um cachorro;
uma fruta
por uma espada.
O rio ora lembrava
a língua mansa de um cão,
ora o ventre triste de um cão,
ora o outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão.
Aquele rio
era como um cão sem plumas.
Nada sabia da chuva azul,
da fonte cor-de-rosa,
da água do copo de água,
da água de cântaro,
dos peixes de água,
da brisa na água.
Sabia dos caranguejos
de lodo e ferrugem.
Sabia da lama
como de uma mucosa.
Devia saber dos polvos.
Sabia seguramente
da mulher febril que habita as ostras.
Aquele rio
jamais se abre aos peixes,
ao brilho,
à inquietação de faca
que há nos peixes.
Jamais se abre em peixes.
Abre-se em flores
pobres e negras
como negros.
Abre-se numa flora
suja e mais mendiga
como são os mendigos negros.
Abre-se em mangues
de folhas duras e crespos
como um negro.
Liso como o ventre
de uma cadela fecunda,
o rio cresce
sem nunca explodir.
Tem, o rio,
um parto fluente e invertebrado
como o de uma cadela.
E jamais o vi ferver
(como ferve
o pão que fermenta).
Em silêncio,
o rio carrega sua fecundidade pobre,
grávido de terra negra.
Em silêncio se dá:
em capas de terra negra,
em botinas ou luvas de terra negra
para o pé ou a mão
que mergulha.
Como às vezes
passa com os cães,
parecia o rio estagnar-se.
Suas águas fluíam então
mais densas e mornas;
fluíam com as ondas
densas e mornas
de uma cobra.
Ele tinha algo, então,
da estagnação de um louco.
Algo da estagnação
do hospital, da penitenciária, dos asilos,
da vida suja e abafada
(de roupa suja e abafada)
por onde se veio arrastando.
Algo da estagnação
dos palácios cariados,
comidos
de mofo e erva-de-passarinho.
Algo da estagnação
das árvores obesas
pingando os mil açúcares
das salas de jantar pernambucanas,
por onde se veio arrastando.
(É nelas,
mas de costas para o rio,
que “as grandes famílias espirituais” da cidade
chocam os ovos gordos
de sua prosa.
Na paz redonda das cozinhas,
ei-las a revolver viciosamente
seus caldeirões
de preguiça viscosa).
Seria a água daquele rio
fruta de alguma árvore?
Por que parecia aquela
uma água madura?
Por que sobre ela, sempre,
como que iam pousar moscas?
Aquele rio
saltou alegre em alguma parte?
Foi canção ou fonte
Em alguma parte?
Por que então seus olhos
vinham pintados de azul
nos mapas?
II. Paisagem do Capibaribe
Entre a paisagem
o rio fluía
como uma espada de líquido espesso.
Como um cão
humilde e espesso.
Entre a paisagem
(fluía)
de homens plantados na lama;
de casas de lama
plantadas em ilhas
coaguladas na lama;
paisagem de anfíbios
de lama e lama.
Como o rio
aqueles homens
são como cães sem plumas
(um cão sem plumas
é mais
que um cão saqueado;
é mais
que um cão assassinado.
Um cão sem plumas
é quando uma árvore sem voz.
É quando de um pássaro
suas raízes no ar.
É quando a alguma coisa
roem tão fundo
até o que não tem).
O rio sabia
daqueles homens sem plumas.
Sabia
de suas barbas expostas,
de seu doloroso cabelo
de camarão e estopa.
Ele sabia também
dos grandes galpões da beira dos cais
(onde tudo
é uma imensa porta
sem portas)
escancarados
aos horizontes que cheiram a gasolina.
E sabia
da magra cidade de rolha,
onde homens ossudos,
onde pontes, sobrados ossudos
(vão todos
vestidos de brim)
secam
até sua mais funda caliça.
Mas ele conhecia melhor
os homens sem pluma.
Estes
secam
ainda mais além
de sua caliça extrema;
ainda mais além
de sua palha;
mais além
da palha de seu chapéu;
mais além
até
da camisa que não têm;
muito mais além do nome
mesmo escrito na folha
do papel mais seco.
Porque é na água do rio
que eles se perdem
(lentamente
e sem dente).
Ali se perdem
(como uma agulha não se perde).
Ali se perdem
(como um relógio não se quebra).
Ali se perdem
como um espelho não se quebra.
Ali se perdem
como se perde a água derramada:
sem o dente seco
com que de repente
num homem se rompe
o fio de homem.
Na água do rio,
lentamente,
se vão perdendo
em lama; numa lama
que pouco a pouco
também não pode falar:
que pouco a pouco
ganha os gestos defuntos
da lama;
o sangue de goma,
o olho paralítico
da lama.
Na paisagem do rio
difícil é saber
onde começa o rio;
onde a lama
começa do rio;
onde a terra
começa da lama;
onde o homem,
onde a pele
começa da lama;
onde começa o homem
naquele homem.
Difícil é saber
se aquele homem
já não está
mais aquém do homem;
mais aquém do homem
ao menos capaz de roer
os ossos do ofício;
capaz de sangrar
na praça;
capaz de gritar
se a moenda lhe mastiga o braço;
capaz
de ter a vida mastigada
e não apenas
dissolvida
(naquela água macia
que amolece seus ossos
como amoleceu as pedras).
III. Fábula do Capibaribe
A cidade é fecundada
por aquela espada
que se derrama,
por aquela
úmida gengiva de espada.
No extremo do rio
o mar se estendia,
como camisa ou lençol,
sobre seus esqueletos
de areia lavada.
(Como o rio era um cachorro,
o mar podia ser uma bandeira
azul e branca
desdobrada
no extremo do curso
— ou do mastro — do rio.
Uma bandeira
que tivesse dentes:
que o mar está sempre
com seus dentes e seu sabão
roendo suas praias.
Uma bandeira
que tivesse dentes:
como um poeta puro
polindo esqueletos,
como um roedor puro,
um polícia puro
elaborando esqueletos,
o mar,
com afã,
está sempre outra vez lavando
seu puro esqueleto de areia.
O mar e seu incenso,
o mar e seus ácidos,
o mar e a boca de seus ácidos,
o mar e seu estômago
que come e se come,
o mar e sua carne
vidrada, de estátua,
seu silêncio, alcançado
à custa de sempre dizer
a mesma coisa,
o mar e seu tão puro
professor de geometria).
O rio teme aquele mar
como um cachorro
teme uma porta entretanto aberta,
como um mendigo,
a igreja aparentemente aberta.
Primeiro,
o mar devolve o rio.
Fecha o mar ao rio
seus brancos lençóis.
O mar se fecha
a tudo o que no rio
são flores de terra,
imagem de cão ou mendigo.
Depois,
o mar invade o rio.
Quer
o mar
destruir no rio
suas flores de terra inchada,
tudo o que nessa terra
pode crescer e explodir,
como uma ilha,
uma fruta.
Mas antes de ir ao mar
o rio se detém
em mangues de água parada.
Junta-se o rio
a outros rios
numa laguna, em pântanos
onde, fria, a vida ferve.
Junta-se o rio
a outros rios.
Juntos,
todos os rios
preparam sua luta
de água parada,
sua luta
de fruta parada.
(Como o rio era um cachorro,
como o mar era uma bandeira,
aqueles mangues
são uma enorme fruta:
A mesma máquina
paciente e útil
de uma fruta;
a mesma força
invencível e anônima
de uma fruta
— trabalhando ainda seu açúcar
depois de cortada —.
Como gota a gota
até o açúcar,
gota a gota
até as coroas de terra;
como gota a gota
até uma nova planta,
gota a gota
até as ilhas súbitas
aflorando alegres).
IV. Discurso do Capibaribe
Aquele rio
está na memória
como um cão vivo
dentro de uma sala.
Como um cão vivo
dentro de um bolso.
Como um cão vivo
debaixo dos lençóis,
debaixo da camisa,
da pele.
Um cão, porque vive,
é agudo.
O que vive
não entorpece.
O que vive fere.
O homem,
porque vive,
choca com o que vive.
Viver
é ir entre o que vive.
O que vive
incomoda de vida
o silêncio, o sono, o corpo
que sonhou cortar-se
roupas de nuvens.
O que vive choca,
tem dentes, arestas, é espesso.
O que vive é espesso
como um cão, um homem,
como aquele rio.
Como todo o real
é espesso.
Aquele rio
é espesso e real.
Como uma maçã
é espessa.
Como um cachorro
é mais espesso do que uma maçã.
Como é mais espesso
o sangue do cachorro
do que o próprio cachorro.
Como é mais espesso
um homem
do que o sangue de um cachorro.
Como é muito mais espesso
o sangue de um homem
do que o sonho de um homem.
Espesso
como uma maçã é espessa.
Como uma maçã
é muito mais espessa
se um homem a come
do que se um homem a vê.
Como é ainda mais espessa
se a fome a come.
Como é ainda muito mais espessa
se não a pode comer
a fome que a vê.
Aquele rio
é espesso
como o real mais espesso.
Espesso
por sua paisagem espessa,
onde a fome
estende seus batalhões de secretas
e íntimas formigas.
E espesso
por sua fábula espessa;
pelo fluir
de suas geléias de terra;
ao parir
suas ilhas negras de terra.
Porque é muito mais espessa
a vida que se desdobra
em mais vida,
como uma fruta
é mais espessa
que sua flor;
como a árvore
é mais espessa
que sua semente;
como a flor
é mais espessa
que sua árvore,
etc. etc.
Espesso,
porque é mais espessa
a vida que se luta
cada dia,
o dia que se adquire
cada dia
(como uma ave
que vai cada segundo
conquistando seu vôo).
25
João Cabral de Melo Neto
Falar com coisas
As coisas, por detrás de nós,
exigem: falemos com elas,
mesmo quando nosso discurso
não consiga ser falar delas.
Dizem: falar sem coisas é
comprar o que seja sem moeda:
é sem fundos, falar com cheques,
em líquida, informe diarreia.
26
João Cabral de Melo Neto
O ferrageiro de Carmona
Um ferrageiro de Carmona,
que me informava de um balcão:
Aquilo? É de ferro fundido,
foi a forma que fez, não a mão.
Só trabalho em ferro forjado
que é quando se trabalha ferro
então, corpo a corpo com ele,
domo-o, dobro-o, até o onde quero.
O ferro fundido é sem luta
é só derramá-lo na forma.
Não há nele a queda de braço
e o cara a cara de uma forja.
Existe a grande diferença
do ferro forjado ao fundido:
é uma distância tão enorme
que não pode medir-se a gritos.
Conhece a Giralda, em Sevilha?
De certo subiu lá em cima.
Reparou nas flores de ferro
dos quatro jarros das esquinas?
Pois aquilo é ferro forjado.
Flores criadas numa outra língua.
Nada têm das flores de forma,
moldadas pelas das campinas.
Dou-lhe aqui humilde receita,
Ao senhor que dizem ser poeta:
O ferro não deve fundir-se
nem deve a voz ter diarréia.
Forjar: domar o ferro à força,
Não até uma flor já sabida,
Mas ao que pode até ser flor
Se flor parece a quem o diga.
27
João Cabral de Melo Neto
O Fim do Mundo
No fim de um mundo melancólico
os homens lêem jornais
Homens indiferentes a comer laranjas
que ardem como o sol
Me deram uma maçã para lembrar
a morte. Sei que cidades telegrafam
pedindo querosene. O véu que olhei voar
caiu no deserto.
O poema final ninguém escreverá
desse mundo particular de doze horas.
Em vez de juízo final a mim me preocupa
o sonho final.
28
João Cabral de Melo Neto
O Rio
ou relação da viagem
que faz o Capibaribe
de sua nascente
à cidade do Recife
(1953)
29
João Cabral de Melo Neto
O que se diz ao editor a propósito de poemas
A José Olympio e Daniel
Eis mais um livro (fio que o último)
de um incurável pernambucano;
se programam ainda publicá-lo,
digam-me, que com pouco o embalsamo.
E preciso logo embalsamá-lo:
enquanto ele me conviva, vivo,
está sujeito a cortes, enxertos:
terminará amputado do fígado,
terminará ganhando outro pâncreas;
e se o pulmão não pode outro estilo
(esta dicção de tosse e gagueira),
me esgota, vivo em mim, livro-umbigo.
Poema nenhum se autonomiza
no primeiro ditar-se, esboçado,
nem no construí-lo, nem no passar-se
a limpo do datilografá-lo.
Um poema é o que há de mais instável:
ele se multiplica e divide,
se pratica as quatro operações
enquanto em nós e de nós existe.
Um poema é sempre, como um câncer:
que química, cobalto, indivíduo
parou os pés desse potro solto?
Só o mumificá-lo, pô-lo em livro.
30
João Cabral de Melo Neto
Os Três Mal-Amados
O amor comeu meu nome, minha identidade,
meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade,
minha genealogia, meu endereço. O amor
comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos
os papéis onde eu escrevera meu nome.
O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas
camisas. O amor comeu metros e metros de
gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o
número de meus sapatos, o tamanho de meus
chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a
cor de meus olhos e de meus cabelos.
O amor comeu meus remédios, minhas receitas
médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas,
minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus
testes mentais, meus exames de urina.
O amor comeu na estante todos os meus livros de
poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações
em verso. Comeu no dicionário as palavras que
poderiam se juntar em versos.
Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso:
pente, navalha, escovas, tesouras de unhas,
canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de
meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada
no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto
mas que parecia uma usina.
O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu
a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de
propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos
que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.
O amor voltou para comer os papéis onde
irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.
O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta,
cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas.
O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos,
e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua
chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba
de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam
sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas
de automóvel.
O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a
água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os
mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde
ácido das plantas de cana cobrindo os morros
regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo
trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de
cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas
coisas de que eu desesperava por não saber falar
delas em verso.
O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas
folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de
meu relógio, os anos que as linhas de minha mão
asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro
grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da
terra, as futuras estantes em volta da sala.
O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e
minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu
silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte”.
31
João Cabral de Melo Neto
O Sim Contra o Sim (Serial)
(...)
Miró sentia a mão direita
demasiado sábia
e que de saber tanto
já não podia inventar nada.
Quis então que desaprendesse
o muito que aprendera,
a fim de reencontrar
a linha ainda fresca da esquerda.
Pois que ela não pôde, ele pôs-se
a desenhar com esta
até que, se operando,
no braço direito ele a enxerta.
A esquerda (se não se é canhoto)
é mão sem habilidade:
reaprende a cada linha,
cada instante, a recomeçar-se.
(...)
A Felix de Athayde
Cesário Verde usava a tinta
de forma singular:
não para colorir,
apesar da cor que nele há.
Talvez que nem usasse tinta,
somente água clara,
aquela água de vidro
que se vê percorrer a Arcádia.
Certo, não escrevia com ela,
ou escrevia lavando:
relavava, enxaguava
seu mundo em sábado de banho.
Assim chegou aos tons opostos
das maçãs que contou:
rubras dentro da cesta
de quem no rosto as tem sem cor.
Augusto dos Anjos não tinha
dessa tinta água clara.
Se água, do Paraíba
nordestino, que ignora a Fábula.
Tais águas não são lavadeiras,
deixam tudo encardido:
o vermelho das chitas
ou o reluzente dos estilos.
E quando usadas como tinta
escrevem negro tudo:
dão um mundo velado
por véus de lama, véus de luto.
Donde decerto o timbre fúnebre,
dureza da pisada,
geometria de enterro
de sua poesia enfileirada.
(...)
In: Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.297-300. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira)
MOVIMENTOS LITERÁRIOS
1945/1962 - Modernismo (Terceira Geração)
TRAÇOS FORMAIS:
Quadra
Verso Branc
32
João Cabral de Melo Neto
O Sol em Pernambuco
O sol em Pernambuco leva dois sóis,
sol de dois canos, de tiro repetido;
o primeiro dos dois. o fuzil de fogo.
incendeia a terra: tiro de inimigo).
O sol ao aterrissar em Pernambuco,
acaba de voar dormindo o mar deserto; mas ao dormir
se refaz, e pode decolar mais aceso;
assim, mais do que acender incendeia,
para rasar mais desertos no caminho;
ou rasá-los mais, até um vazio de mar
por onde ele continue a voar dormindo.
*
Pinzón
diz que o cabo Rostro Hermoso (que se diz hoje de Santo Agostinho)
cai pela terra de mais luz da terra(mudou o nome, sobrou a luz a pino);
dá-se que hoje dói na vida tanta luz: ela revela real
o real, impõe filtros: as lentes negras, lentes de diminuir,
as lentes de distanciar, ou do exílio. (O sol em Pernambuco leva
dois sóis, sol de dois canos, de tiro repetido; o segundo dos
dois, o fuzil de luz, revela real a terra: tiro de inimigo).
33
João Cabral de Melo Neto
Alguns Toureiros
Eu vi Manolo Gonzáles
e Pepe Luís, de Sevilha:
precisão doce de flor,
graciosa, porém precisa.
Vi também Julio Aparício,
de Madrid, como Parrita:
ciência fácil de flor,
espontânea, porém estrita.
Vi Miguel Báez, Litri,
dos confins da Andaluzia,
que cultiva uma outra flor:
angustiosa de explosiva.
E também Antonio Ordóñez,
que cultiva flor antiga:
perfume de renda velha,
de flor em livro dormida.
Mas eu vi Manuel Rodríguez,
Manolete, o mais deserto,
o toureiro mais agudo,
mais mineral e desperto,
o de nervos de madeira,
de punhos secos de fibra
o da figura de lenha
lenha seca de caatinga,
o que melhor calculava
o fluido aceiro da vida,
o que com mais precisão
roçava a morte em sua fímbria,
o que à tragédia deu número,
à vertigem, geometria
decimais à emoção
e ao susto, peso e medida.
34
João Cabral de Melo Neto
Autobiografia de um só dia
No engenho poço não nasci:
minha mãe, na véspera de mim,
veio de lá para a Jaqueira,
que era onde, queiram ou não queiram,
os netos tinham de nascer,
no quarto-avós, frente à maré.
Ou porque chegássemos tarde
(não porque quisesse apressar-me,
e se soubesse o que teria
de tédio à frente, abortaria)
ou porque o doutor deu-me quandos,
minha mãe no quarto-dos-santos,
misto de santuário e capela,
lá dormiria, até que para ela,
fizessem cedo no outro dia
o quarto onde os netos nasciam.
Porém em pleno céu de gessos,
naquela madrugada mesmo,
nascemos eu e minha morte,
contra o ritual daquela corte
que nada de uma homem sabia:
que ao nascer esperneia, grita.
Parido no quarto-dos-santos,
sem querer, nasci blasfemando,
pois são blasfêmias sangue e grito
em meio à feririce de lírios,
mesmo se explodem (gritos, sangue),
de chácaras entre marés, mangues.
35
João Cabral de Melo Neto
Auto-Crítica
Só duas coisas conseguiram
(des)feri-lo até a poesia:
o Pernambuco de onde veio
e o aonde foi, a Andaluzia.
Um, o vacinou do falar rico
e deu-lhe a outra, fêmea e viva,
desafio demente: em verso
dar a ver Sertão e Sevilha.
36
João Cabral de Melo Neto
Camarada diamante!
Não sou um diamante nato
nem consegui cristalizá-lo:
se ele te surge no que faço
será um diamante opaco
de quem por incapaz do vago
quer de toda forma evitá-lo,
senão com o melhor, o claro,
do diamante, com o impacto:
com a pedra, a aresta, com o aço
do diamante industrial, barato,
que incapaz de ser cristal raro
vale pelo que tem de cacto.
37
João Cabral de Melo Neto
Catar Feijão
Catar feijão se limita com escrever:
joga-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.
Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a como o risco
38
João Cabral de Melo Neto
Cemitério Pernambucano (Nossa Senhora da Luz)
Nesta terra ninguém jaz,
pois também não jaz um rio
noutro rio, nem o mar
é cemitério de rios.
Nenhum dos mortos daqui
vem vestido de caixão.
Portanto, eles não se enterram,
são derramados no chão.
Vêm em redes de varandas
abertas ao sol e à chuva.
Trazem suas próprias moscas.
O chão lhes vai como luva.
Mortos ao ar-livre, que eram,
hoje à terra-livre estão.
São tão da terra que a terra
nem sente sua intrusão.
Publicado no livro Duas águas: poemas reunidos (1956). Poema integrante da série Paisagens com Figuras.
In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.159. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira
39
João Cabral de Melo Neto
Encontro com um Poeta
Em certo lugar da Mancha,
onde mais dura é Castela,
sob as espécies de um vento
soprando armado de areia,
vim surpreender a presença,
mais do que pensei, severa,
de certo Miguel Hernández,
hortelão de Orihuela.
A voz desse tal Miguel,
entre palavras e terra
indecisa, como em Fraga
as casas o estão da terra,
foi um dia arquitetura,
foi voz métrica de pedra,
tal como, cristalizada,
surge Madrid a quem chega.
Mas a voz que percebi
no vento da parameira
era de terra sofrida
e batida, terra de eira.
Não era a voz expurgada
de suas obras seletas:
era uma edição do vento,
que não vai às bibliotecas,
era uma edição incômoda,
a que se fecha a janela,
incômoda porque o vento
não censura mas libera.
A voz que então percebi
no vento da parameira
era aquela voz final
de Miguel, rouca de guerra
(talvez ainda mais aguda
no sotaque da poeira;
talvez mais dilacerada
quando o vento a interpreta).
Vi então que a terra batida
do fim da vida do poeta,
terra que de tão sofrida
acabou virando pedra,
se havia multiplicado
naquelas facas de areia
e que, se multiplicando,
multiplicara as arestas.
Naquela edição do vento
senti a voz mais direta:
igual que árvore amputada,
ganhara gumes de pedra.
Publicado no livro Duas águas: poemas reunidos (1956). Poema integrante da série Paisagens com Figuras.
In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.155-156. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira
40
João Cabral de Melo Neto
Escritos com o Corpo
I
Ela tem tal composição
e bem entramada sintaxe
que só se pode apreendê-la
em conjunto, nunca em detalhe.
Não se vê nenhum termo, nela,
em que a atenção mais se retarde,
e que, por mais significante,
possua, exclusivo, sua chave.
Nem é possível dividi-la,
como a uma sentença, em partes;
menos, do que nela é sentido,
se conseguir uma paráfrase.
E assim como, apenas completa,
ela é capaz de revelar-se,
apenas um corpo completo
tem, de apreendê-la, faculdade.
Apenas um corpo completo
e sem dividir-se em análise
será capaz do corpo a corpo
necessário a que, sem desfalque,
queira prender todos os temas
que pode haver no corpo frase:
que ela, ainda sem se decompor,
revela então, em intensidade.
II
De longe como Mondrians
em reproduções de revista
ela só mostra a indiferente
perfeição da geometria.
Porém de perto, o original
do que era antes correção fria,
sem que a câmara da distância
e suas lentes interfiram,
porém de perto, ao olho perto,
sem intermediárias retinas,
de perto, quando o olho é tato,
ao olho imediato em cima,
se descobre que existe nela
certa insuspeitada energia
que aparece nos Mondrians
se vistos na pintura viva.
E que porém um Mondrian
num ponto se diferencia:
em que nela essa vibração,
que era de longe impercebida,
pode abrir mão da cor acesa
sem que um Mondrian não vibra,
e vibrar com a textura em branco
da pele, ou da tela, sadia.
III
Quando vestido unicamente
com a macieza nua dela,
não apenas sente despido:
sim, de uma forma mais completa.
Então, de fato, está despido,
senão dessa roupa que é ela.
Mas essa roupa nunca veste:
despe de uma outra mais interna.
É que o corpo quando se veste
de ela roupa, da seda ela,
nunca sente mais definido
como com as roupas de regra.
Sente ainda mais que despido:
pois a pele dele, secreta,
logo se esgarça, e eis que ele assume
a pele dela, que ela empresta.
Mas também a pele emprestada
dura bem pouco enquanto véstia:
com pouco, ela toda também,
já se esgarça, se desespessa,
até acabar por nada ter
nem de epiderme nem de seda:
e tudo acabe confundido,
nudez comum, sem mais fronteira.
IV
Está, hoje que não está
numa memória mais de fora.
De fora: como se estivesse
num tipo externo de memória.
Numa memória para o corpo
externa ao corpo, como bolsa,
Que como bolsa, a certos gestos,
o corpo que a leva abalroa.
Memória exterior ao corpo
e não da que de dentro aflora;
E que, feita que é para o corpo,
carrega presenças corpóreas.
Pois nessa memória é que ela,
inesperada se incorpora:
na presença, coisa, volume,
imediata ao corpo, sólida,
e que ora é volume maciço,
entre os braços, neles envolta,
e que ora é volume vazio,
que envolve o corpo, ou o acoita:
como o de uma coisa maciça
que ao mesmo tempo fosse oca,
que o corpo teve, onde já esteve,
e onde o ter e o estar igual fora.
41
João Cabral de Melo Neto
A Joaquim Cardozo
Com teus sapatos de borracha
seguramente
é que os seres pisam
no fundo das águas.
Encontraste algum dia
sobre a terra
o fundo do mar,
o tempo marinho e calmo?
Tuas refeições de peixe;
teus nomes
femininos: Mariana; teu verso
medido pelas ondas;
a cidade que não consegues
esquecer
aflorada no mar: Recife,
arrecifes, marés, maresias;
e marinha ainda a arquitetura
que calculaste:
tantos sinais da marítima nostalgia
que te fez lento e longo
(O engenheiro, 1942-1945)
42
João Cabral de Melo Neto
A Lição de Poesia
1. Toda a manhã consumida
como um sol imóvel
diante da folha em branco:
princípio do mundo, lua nova.
Já não podias desenhar
sequer uma linha;
um nome, sequer uma flor
desabrochava no verão da mesa:
nem no meio-dia iluminado,
cada dia comprado,
do papel, que pode aceitar,
contudo, qualquer mundo.
2. A noite inteira o poeta
em sua mesa, tentando
salvar da morte os monstros
germinados em seu tinteiro.
Monstros, bichos, fantasmas
de palavras, circulando,
urinando sobre o papel,
sujando-o com seu carvão.
Carvão de lápis, carvão
da idéia fixa, carvão
da emoção extinta, carvão
consumido nos sonhos.
3. A luta branca sobre o papel
que o poeta evita,
luta branca onde corre o sangue
de suas veias de água salgada.
A física do susto percebida
entre os gestos diários;
susto das coisas jamais pousadas
porém imóveis — naturezas vivas.
E as vinte palavras recolhidas
nas águas salgadas do poeta
e de que se servirá o poeta
em sua máquina útil.
Vinte palavras sempre as mesmas
de que conhece o funcionamento,
a evaporação, a densidade
menor que a do ar.
Publicado no livro O engenheiro (1945).
In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.78-79. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira
43
João Cabral de Melo Neto
A Luz em Joaquim Cardozo
Escrever de Joaquim Cardozo
só pode quem conhece
aquela luz Velásquez
de onde nasceu e de que escreve.
A luz que das várzeas da Várzea
onde nasceu, redonda,
vem até o ex-Cais de Santa Rita
que viveu: luz redoma,
luz espaço, luz que se veste,
leve como uma rede,
e clara, até quando preside
o cemitério e a sede.
Publicado no livro Museu de tudo (1975).
In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.375. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira)
44
João Cabral de Melo Neto
A palavra seda
A atmosfera que te envolve
atinge tais atmosferas
que transforma muitas coisas
que te concernem, ou cercam.
E como as coisas, palavras
impossíveis de poema:
exemplo, a palavra ouro,
e até este poema, seda.
É certo que tua pessoa
não faz dormir, mas desperta;
nem é sedante, palavra
derivada da de seda.
E é certo que a superfície
de tua pessoa externa,
de tua pele e de tudo
isso que em ti se tateia,
nada tem da superfície
luxuosa, falsa, acadêmica,
de uma superfície quando
se diz que ela é “como seda”.
Mas em ti, em algum ponto,
talvez fora de ti mesma,
talvez mesmo no ambiente
que retesas quando chegas,
há algo de muscular,
de animal, carnal, pantera,
de felino, da substância
felina, ou sua maneira,
de animal, de animalmente,
de cru, de cruel, de crueza, que sob a palavra gasta
persiste na coisa seda.
(Quaderna, 1956-1959)
45
João Cabral de Melo Neto
A VIcente do Rego Monteiro
Eu vi teus bichos
mansos e domésticos:
um motociclo
gato e cachorro.
Estudei contigo
um planador,
volante máquina,
incerta e frágil.
Bebi da aguardente
que fabricaste,
servida às vezes
numa leiteira.
Mas sobretudo
senti o susto
de tuas surpresas.
E é por isso
que quando a mim
alguém pergunta
tua profissão
não digo nunca
que és pintor
ou professor
(palavras pobres
que nada dizem
de tais surpresas);
respondo sempre:
— É inventor,
trabalha ao ar livre
de régua em punho,
janela aberta
sobre a manhã.
Publicado no livro O engenheiro (1945).
In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.80-81. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira
46
João Cabral de Melo Neto
A Augusto de Campos
Ao tentar passar a limpo,
refazer, dar mais decoro
ao gago em que falo em verso
e em que tanto me rechovo,
pensei que de toda a gente
que a nosso ofício ou esforço,
tão pra nada, dá-se tanto
que chega quase ao vicioso,
você, cuja vida sempre
foi fazer/catar o novo
talvez veja no defunto
coisas não mortas de todo.
Você aqui encontrará
as mesmas coisas e loisas
que me fazem escrever
tanto e de tão poucas coisas:
o pouco-verso de oito sílabas
(em linha vizinha à prosa)
que raro tem oito sílabas,
pois metrifica à sua volta;
a perdida rima toante
que apaga o verso e não soa,
que o faz andar pé no chão
pelos aceiros da prosa.
Nada daquilo que você
construiu durante a vida;
muito aquém do ponto extremo
é a poesia oferecida
a quem pode, como a sua,
lavar-se da que existia,
levá-la a essa pureza extrema
em que é perdida de vista;
ela que hoje da janela
vê que na rua desfila
banda de que não faz parte,
rindo de ser sem disciplina.
Por que é então que este livro
tão longamente é enviado
a quem faz uma poesia
de distinta liga de aço?
Envio-o ao leitor contra,
envio-o ao leitor malgrado
e intolerante, o que Pound
diz de todos o mais grato;
àquele que me sabendo
não poder ser de seu lado,
soube ler com acuidade
poetas revolucionados.
47
João Cabral de Melo Neto
À Brasília de Oscar Niemeyer
Eis casas-grandes de engenho,
horizontais, escancaradas,
onde se existe em extensão
e a alma todoaberta se espraia.
Não se sabe é se o arquiteto
as quis símbolos ou ginástica:
símbolos do que chamou Vinicius
"imensos limites da pátria"
ou ginástica, para ensinar
quem for viver naquelas salas
um deixar-se, um deixar viver
de alma arejada, não fanática.
Publicado no livro Museu de tudo (1975).
In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.399. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira
48
João Cabral de Melo Neto
Poema(s) da Cabra
Nas margens do Mediterrâneo
não se vê um palmo de terra
que a terra tivesse esquecido
de fazer converter em pedra.
Nas margens do Mediterrâneo
Não se vê um palmo de pedra
que a pedra tivesse esquecido
de ocupar com sua fera.
Ali, onde nenhuma linha
pode lembrar, porque mais doce,
o que até chega a parecer
suave serra de uma foice,
não se vê um palmo de terra
por mais pedra ou fera que seja,
que a cabra não tenha ocupado
com sua planta fibrosa e negra.
1
A cabra é negra. Mas seu negro
não é o negro do ébano douto
(que é quase azul) ou o negro rico
do jacarandá (mais bem roxo).
O negro da cabra é o negro
do preto, do pobre, do pouco.
Negro da poeira, que é cinzento.
Negro da ferrugem, que é fosco.
Negro do feio, às vezes branco.
Ou o negro do pardo, que é pardo.
disso que não chega a ter cor
ou perdeu toda cor no gasto.
É o negro da segunda classe.
Do inferior (que é sempre opaco).
Disso que não pode ter cor
porque em negro sai mais barato.
2
Se o negro quer dizer noturno
o negro da cabra é solar.
Não é o da cabra o negro noite.
É o negro de sol. Luminar.
Será o negro do queimado
mais que o negro da escuridão.
Negra é do sol que acumulou.
É o negro mais bem do carvão.
Não é o negro do macabro.
Negro funeral. Nem do luto.
Tampouco é o negro do mistério,
de braços cruzados, eunuco.
É mesmo o negro do carvão.
O negro da hulha. Do coque.
Negro que pode haver na pólvora:
negro de vida, não de morte.
3
O negro da cabra é o negro
da natureza dela cabra.
Mesmo dessa que não é negra,
como a do Moxotó, que é clara.
O negro é o duro que há no fundo
da cabra. De seu natural.
Tal no fundo da terra há pedra,
no fundo da pedra, metal.
O negro é o duro que há no fundo
da natureza sem orvalho
que é a da cabra, esse animal
sem folhas, só raiz e talo,
que é a da cabra, esse animal
de alma-caroço, de alma córnea,
sem moelas, úmidos, lábios,
pão sem miolo, apenas côdea.
4
Quem já encontrou uma cabra
que tivesse ritmos domésticos?
O grosso derrame do porco,
da vaca, do sono e de tédio?
Quem encontrou cabra que fosse
animal de sociedade?
Tal o cão, o gato, o cavalo,
diletos do homem e da arte?
A cabra guarda todo o arisco,
rebelde, do animal selvagem,
viva demais que é para ser
animal dos de luxo ou pajem.
Viva demais para não ser,
quando colaboracionista,
o reduzido irredutível,
o inconformado conformista.
5
A cabra é o melhor instrumento
de verrumar a terra magra.
Por dentro da serra e da seca
não chega onde chega a cabra.
Se a serra é terra, a cabra é pedra.
Se a serra é pedra, é pedernal.
Sua boca é sempre mais dura
que a serra, não importa qual.
A cabra tem o dente frio,
a insolência do que mastiga.
Por isso o homem vive da cabra
mas sempre a vê como inimiga.
Por isso quem vive da cabra
e não é capaz do seu braço
desconfia sempre da cabra:
diz que tem parte com o Diabo.
6
Não é pelo vício da pedra,
por preferir a pedra à folha.
É que a cabra é expulsa do verde,
trancada do lado de fora.
A cabra é trancada por dentro.
Condenada à caatinga seca.
Liberta, no vasto sem nada,
proibida, na verdura estreita.
Leva no pescoço uma canga
que a impede de furar as cercas.
Leva os muros do próprio cárcere:
prisioneira e carcereira.
Liberdade de fome e sede
da ambulante prisioneira.
Não é que ela busque o difícil:
é que a sabem capaz de pedra.
7
A vida da cabra não deixa
lazer para ser fina ou lírica
(tal o urubu, que em doces linhas
voa à procura da carniça).
Vive a cabra contra a pendente,
sem os êxtases das decidas.
Viver para a cabra não é
re-ruminar-se introspectiva.
É, literalmente, cavar
a vida sob a superfície,
que a cabra, proibida de folhas,
tem de desentranhar raízes.
Eis porque é a cabra grosseira,
de mãos ásperas, realista.
Eis porque, mesmo ruminando,
não é jamais contemplativa.
8
O núcleo de cabra é visível
por debaixo de muitas coisas.
Com a natureza da cabra
outras aprendem sua crosta.
Um núcleo de cabra é visível
em certos atributos roucos
que têm as coisas obrigadas
a fazer de seu corpo couro.
A fazer de seu couro sola,
a armar-se em couraças, escamas:
como se dá com certas coisas
e muitas condições humanas.
Os jumentos são animais
que muito aprenderam com a cabra.
O nordestino, convivendo-a,
fez-se de sua mesma casta.
9
O núcleo de cabra é visível
debaixo do homem do Nordeste.
Da cabra lhe vem o escarpado
e o estofo nervudo que o enche.
Se adivinha o núcleo de cabra
no jeito de existir, Cardozo,
que reponta sob seu gesto
como esqueleto sob o corpo.
E é outra ossatura mais forte
que o esqueleto comum, de todos;
debaixo do próprio esqueleto,
no fundo centro de seus ossos.
A cabra deu ao nordestino
esse esqueleto mais de dentro:
o aço do osso, que resiste
quando o osso perde seu cimento.
*
O Mediterrâneo é mar clássico,
com águas de mármore azul.
Em nada me lembra das águas
sem marca do rio Pajeú.
As ondas do Mediterrâneo
estão no mármore traçadas.
Nos rios do Sertão, se existe,
a água corre despenteada.
As margens do Mediterrâneo
parecem deserto balcão.
Deserto, mas de terras nobres
não da piçarra do Sertão.
Mas não minto o Mediterrâneo
nem sua atmosfera maior
descrevendo-lhe as cabras negras
em termos da do Moxotó.
49
João Cabral de Melo Neto
Resposta a Vinícius de Moraes
Camarada diamante!
Não sou um diamante nato
nem consegui cristalizá-lo:
se ele te surge no que faço
será um diamante opaco
de quem por incapaz de vago
quer de toda forma evitá-lo,
senão com o melhor, o claro,
do diamante, com o impacto:
com a pedra, a aresta, com o aço
do diamante industrial, barato,
que incapaz de ser cristal raro
vale pelo que tem de cacto.
Resposta ao poema Retrato, à sua maneira: https://www.escritas.org/pt/t/52778/retrato-a-sua-maneira
50
João Cabral de Melo Neto
Serventia das idéias fixas
Para Vinícius de Morais
Assim como uma bala
enterrada no corpo,
fazendo mais espesso
um dos lados do morto;
assim como uma bala
do chumbo mais pesado,
no músculo de um homem
pesando-o mais de um lado;
qual bala que tivesse
um vivo mecanismo,
bala que possuísse
um coração ativo
igual ao de um relógio
submerso em algum corpo,
ao de um relógio vivo
e também revoltoso,
relógio que tivesse
o gume de uma faca
e toda a impiedade
de lâmina azulada;
assim como uma faca
que sem bolso ou bainha
se transformasse em parte
de vossa anatomia;
qual uma faca íntima
ou faca de uso interno,
habitando num corpo
como o próprio esqueleto
de um homem que o tivesse,
e sempre, doloroso
de homem que se ferisse
contra seus próprios ossos.
A
Seja bala, relógio,
ou a lâmina colérica,
é contudo uma ausência
o que esse homem leva.
Mas o que não está
nele está como bala:
tem o ferro do chumbo,
mesma fibra compacta.
Isso que não está
nele é como um relógio
pulsando em sua gaiola,
sem fadiga, sem ócios.
Isso que não está
nele está como a ciosa
presença de uma faca,
de qualquer faca nova.
Por isso é que o melhor
dos símbolos usados
é a lâmina cruel
(melhor se de Pasmado):
porque nenhum indica
essa ausência tão ávida
como a imagem da faca
que só tivesse lâmina,
nenhum melhor indica
aquela ausência sôfrega
que a imagem de uma faca
reduzido à sua boca;
que a imagem de uma faca
entregue inteiramente
à fome pelas coisas
que nas facas se sente.
B
Das mais surpreendentes
é a vida de tal faca:
faca, ou qualquer metáfora,
pode ser cultivada.
E mais surpreendente
ainda é a sua cultura:
medra não do que come
porém do que jejua.
Podes abandoná-la
essa faca intestina:
jamais a encontrarás
com a boca vazia.
Do nada ela destila
a azia e o vinagre
e mais estratagemas
privativos dos sabres.
E como faca que é,
fervorosa e energética,
sem ajuda dispara
sua máquina perversa:
a lâmina despida
que cresce ao se gastar,
que menos dorme
quanto menos sono há,
cujo muito cortar
lhe aumenta mais o corte
e se vive a se parir
em outras, como fonte.
(Que a vida dessa fac
se mede pelo avesso:
seja relógio ou bala,
ou seja faca mesmo.)
C
Cuidado com o objeto,
com o objeto cuidado,
mesmo sendo uma bala
desse chumbo ferrado,
porque seus dentes já
a bala os traz rombudos
e com facilidade
se em botam mais no músculo.
Mais cuidado porém
quando for um relógio
com o seu coração
aceso e espasmódico.
É preciso cuidado
por que não se acompasse
o pulso do relógio
com o pulso do sangue,
e seu cobre tão nítido
não confunda a passada
com o sangue que bate
já sem morder mais nada.
Então se for faca,
maior seja o cuidado:
a bainha do corpo
pode absorver o aço.
Também seu corte às vezes
tende a tornar-se rouco
e há casos em que ferros
degeneram em couro.
O importante é que a faca
o seu ardor não perca
e tampouco a corrompa
o cabo de madeira.
D
Pois essa faca às vezes
por si mesma se apaga.
É a isso que se chama
maré baixa da faca.
Talvez que não se apague
e somente adormeça.
Se a imagem é relógio,
a sua abelha cessa.
Mas quer durma ou se apague:
ao calar tl motor,
a alma inteira se torna
de um alcalino teor
bem semelhante à neutra
substância, quase feltro,
que é a das almas que não
têm facas-esqueleto.
E a espada dessa lâmina,
sua chama antes acesa,
e o relógio nervoso
e a tal bala indigesta,
tudo segue o processo
de lâmina que cega:
faz-se faca, relógio
ou bala de madeira,
bala de couro ou pano,
ou relógio de breu,
faz-se faca sem vértebras,
faca de argila ou mel.
(Porém quando a maré
já nem se espera mais,
eis que a faca ressurge
com todos seus cristais.)
E
Forçoso é conservar
a faca bem oculta
pois na umidade pouco
seu relâmpago dura
(na umidade que criam
salivas de conversas,
tanto mais pegajosas
quanto mais confidências).
Forçoso é esse cuidado
mesmo se não é faca
a brasa que te habita
e sim relógio ou bala.
Não suportam também
todas as atmosferas:
sua carne selvagem
quer câmaras severas.
Mas se deves sacá-los
para melhor sofrê-los,
que seja algum páramo
ou agreste de ar aberto.
Mas nunca seja ao ar
que pássaros habitem.
Deve ser a um ar duro,
sem sombra e sem vertigem.
E nunca seja à noite,
que estas têm as mãos férteis,
Aos ácidos do sol
seja, ao sol do Nordeste,
à febre desse sol
que faz de arame as ervas,
que faz de esponja o vento
e faz de sede a terra.
F
Quer seja aquela bala
ou outra qualquer imagem,
seja esmo um relógio
a ferida que guarde,
ou ainda uma faca
que só tivesse lâmina,
de todas as imagens
a mais voraz e gráfica,
ninguém do próprio corpo
poderá retirá-la,
não importa se é bala
nem se é relógio ou faca,
nem importa qual seja
a raça dessa lâmina:
faca mansa de mesa,
feroz pernambucana.
E se não a retira
quem sofre sua rapina,
menos pode arrancá-la
nenhuma mão vizinha.
Não pode contra ela
a inteira medicina
de facas numerais
e aritméticas pinças.
Nem ainda a polícia
com seus cirurgiões
e até nem mesmo o tempo
como os seus algodões.
E nem a mão de quem
sem o saber plantou
bala, relógio ou faca,
imagens de furor.
G
Essa bala que um homem
leva às vezes na carne
faz menos rarefeito
todo aquele que a guarde
O que um relógio implica
por indócil e inseto,
encerrado no corpo
faz este mais desperto.
E se é faca a metáfora
do que leva no músculo,
facas dentro de um homem
dão-lhe maior impulso.
O fio de uma faca
mordendo o corpo humano,
de outro corpo ou punhal
tal corpo vai armando,
pois lhe mantendo vivas
todas as molas da alma
dá-lhes ímpeto de lâmina
e cio de arma branca,
além de ter o corpo
que a guarda crispado,
insolúvel no sono
e em tudo quanto é vago,
como naquela história
por alguém referida
de um homem que se fez
memória tão ativa
que pôde conservar
treze anos na palma
o peso de uma mão,
feminina, apertada.
H
Quando aquele que os sofre
trabalha com palavras,
são úteis o relógio,
a bala e, mais, a faca.
Os homens que em geral
lidam nessa oficina
têm no almoxarifado
só palavras extintas:
umas que se asfixiam
por debaixo do pó
outras despercebidas
em meio a grandes nós;
palavras que perderam
no uso todo o metal
e a areia que detém
a atenção que lê mal.
Pois somente essa fraca
dará a tal operário
olhos mais frescos para
o seu vocabulário
e somente essa faca
e o exemplo de seu dente
lhe ensinará a obter
de um material doente
o que em todas as facas é
51
João Cabral de Melo Neto
Uma Sevilhana pela Espanha
No sol de mar do céu de Cádiz,
mediterrâneo e classicista,
que dá às coisas mais terrosas
carne de estátua ou peixe, vítrea,
ela seguia carne
do campo de Sevilha:
carne de terra adentro,
carnal, jamais marisca
Durante essas ruas paris
de Barcelona, tão avenida,
entre uma gente meio londres
urbanizada em mansas filas,
chegava a desafio
seu caminhar sevilha:
que é levando a cabeça
em flor que fosse espiga.
Dentro da vida de Madrid,
onde Castela, monja e bispa,
alguma vez deixa-se rir,
deixa-se ser Andaluzia,
logo se descobria
seu ter-se, de Sevilha:
como, se o riso é claro,
há mais riso em quem ria.
através túneis de museus,
museus-mosteiros que amortiçam
a luz já velha, castelhana,
sobre obras mortas de fadiga,
tudo ela convertia
no museu de Sevilha:
museu entre jardins
e caules de água viva.
(Serial, 1959-1961)
52
João Cabral de Melo Neto