Junqueira Freire

Morte


(Hora de delírio)

Pensamento gentil de paz eterna,
Amiga morte, vem. Tu és o termo
De dois fantasmas que a existência formam,
— Dessa alma vã e desse corpo enfermo.

Pensamento gentil de paz eterna,
Amiga morte, vem. Tu és o nada,
Tu és a ausência das moções da vida,
Do prazer que nos custa a dor passada.

Pensamento gentil de paz eterna,
Amiga morte, vem. Tu és apenas
A visão mais real das que nos cercam,
Que nos extingues as visões terrenas.

(...)

Amei-te sempre: — e pertencer-te quero
Para sempre também, amiga morte.
Quero o chão, quero a terra — esse elemento;
Que não se sente dos vaivéns da sorte.

Para tua hecatombe de um segundo
Não falta alguém? — Preenche-a tu comigo.
Leva-me à região da paz horrenda,
Leva-me ao nada, leva-me contigo.

Miríadas de vermes lá me esperam
Para nascer de meu fermento ainda.
Para nutrir-se de meu suco impuro,
Talvez me espera uma plantinha linda.

Vermes que sobre podridões refervem,
Plantinha que a raiz meus ossos ferra,
Em vós minha alma e sentimento e corpo
Irão em partes agregar-se à terra.

E depois nada mais. Já não há tempo,
Nem vida, nem sentir, nem dor, nem gosto.
Agora o nada, — esse real tão belo
Só nas terrenas vísceras deposto.

(...)


Publicado no livro Obras Póstumas (1868*). Poema integrante da série Contradições Poéticas.

In: GRANDES poetas românticos do Brasil. Pref. e notas biogr. Antônio Soares Amora. Introd. Frederico José da Silva Ramos. São Paulo. LEP, 1959. v.2, p.62-6

Martírio


Beijar-te a fronte linda:
Beijar-te o aspecto altivo:
Beijar-te a tez morena:
Beijar-te a rir lascivo:

Beijar o ar, que aspiras:
Beijar o pó, que pisas:
Beijar a voz, que soltas:
Beijar a luz, que visas:

Sentir teus modos frios:
Sentir tua apatia:
Sentir até repúdio:
Sentir essa ironia:

Sentir que me resguardas:
Sentir que me arreceias:
Sentir que me repugnas:
Sentir que até me odeias:

Eis a descrença e crença,
Eis o absinto e a flor,
Eis o amor e o ódio,
Eis o prazer e a dor!

Eis o estertor de morte,
Eis o martírio eterno,
Eis o ranger de dentes,
Eis o penar do inferno!


Publicado no livro Obras Póstumas (1868*). Poema integrante da série Contradições Poéticas.

In: GRANDES poetas românticos do Brasil. Pref. e notas biogr. Antônio Soares Amora. Introd. Frederico José da Silva Ramos. São Paulo: LEP, 1959. v.2, p.5

A Freira


Eu jovem freira, bem triste choro
Aqui cosida co'a cruz de Deus.
Aqui sozinha, ninguém não sabe
Dos meus desejos, dos males meus.

Qual no deserto se praz a rola,
Cuidam que a freira seja feliz.
E a pobre freira, dentro da cela,
Ninguém não sabe que se maldiz.

Enquanto a vida não se desdobra,
E apenas rompe, róseo botão,
A freira insone prateia de astros,
Povoa de anjos sua solidão.

Uma palavra que ela profere
É sempre um ente que ela criou.
Uma florzinha que colhe acaso
É uma amiga que ela encontrou.

Conversa à noite co'a estrela vésper,
Ama o opaco de seu clarão.
E sente chamas que julga dores,
E o peito aperta co'a nívea mão.

Ela não sabe que a estrela vésper
Influi nas almas lascivo ardor:
Que, não sem causa, no tempo antigo,
A estrela vésper chamou-se — Amor.

A estrela vésper produz nas virgens
Estranho incêndio, vulcão fatal:
Quer seja freira — do Cristo filha,
Quer seja antiga pagã vestal.

A estrela vésper... Fugi, meninas,
Fugi dos raios do seu candor.
A estrela vésper influi volúpia,
A estrela vésper chama-se — Amor.

(...)


Publicado no livro Inspirações do Claustro (1855).

In: GRANDES poetas românticos do Brasil. Pref. e notas biogr. Antônio Soares Amora. Introd. Frederico José da Silva Ramos. São Paulo: LEP, 1959. v.2, p.25-2

O Hino da Cabocla


(Canção nacional)

Sou índia, sou virgem, sou linda, sou débil,
— É quando vós outros, ó tapes, dizeis!
Sabei, bravos tapes! — que eu sei com destreza
Cravar minhas setas no peito dos reis!

Sabei que não canto somente prazeres,
Sabei que não gemo somente de amores:
Sabei que nem sempre vagueio nos bosques,
Sabei que nem sempres me adorno de flores.

Meus lábios não beijam os lábios do amante,
Meus lábios combatem tirânicas leis:
Meus lábios são como trovões estupendos,
Que cospem coriscos na face dos reis!

Quem viu-me nas liças, quem viu-me covarde,
Aos silvos da flecha — quem viu-me escorar?
Eu sou como a onça, pequena e valente,
Eu sei os perigos da guerra afrontar!

Enchi meus carcases de agudas taquaras,
Que iguais nas florestas jamais achareis;
E dessa taquaras fatais é que pendem
As vidas infames de todos os reis.

Sou índia, não nego: — meus finos cabelos
— Qual juba ferina — bem longos que são!
Porém esse peito, que férvido pulsa,
É másculo, ó tapes! — ou é de um leão!

(...)


Publicado no livro Obras Póstumas (1868*). Poema integrante da série Contradições Poéticas.

In: GRANDES poetas românticos do Brasil. Pref. e notas biogr. Antônio Soares Amora. Introd. Frederico José da Silva Ramos. São Paulo: LEP, 1959. v.2, p.6

À Morte de Garrett


No doce arranco
Que o céu lhe abrira,
Garrett ouvia
Seus próprios carmes
De terno amor.

E aos brancos lábios
Franco, improviso,
Lhe veio um riso
Em vez de angústias,
Em vez de dor.

Morreu poeta,
Ledo e gostoso:
Morreu ditoso,
Cingido, ornado
Dos cantos seus.

Lá foi com os anjos,
Que o inspiraram,
Que o sublimaram,
Cantar saudades
Ao pé de Deus.

Cantai, donzelas
Da pátria dele,
Cantai aquele
Hino de amores,
Hino gentil.

Ouvi que entoam
Seu hino etéreo
Em som funéreo
As belas virgens
Do meu Brasil.

(...)


Publicado no livro Obras Póstumas (1868*). Poema integrante da série Contradições Poéticas.

In: GRANDES poetas românticos do Brasil. Pref. e notas biogr. Antônio Soares Amora. Introd. Frederico José da Silva Ramos. São Paulo: LEP, 1959. v.2, p.6