Luci Collin

DE SOMBREAÇÃO


quando eu vivia na casa da rua anis
os cômodos e os exemplos eram imensos
calor abatumado na água-furtada
os insetos tergiversavam
e as rãs e os sorrisos eram de cristal holoédrico

uma mão regia os contratempos
os cometas eram inexplicáveis
as uvas de cera eram jacobinas
o amuo era sustado com água vegetomineral

elogio à lerdeza e à pantofagia
baralhando as notícias do jornal
um quelônio às vezes emergia da horta
para surpresa dos anões estáticos
para desespero da tia-avó manquitola
para a emoção do mamoneiro 

quando viviam todos na casa e ainda eu
os genuflexórios levavam a alturas máximas
e eram temíveis as quedas e as vertigens súbitas
e eram temíveis as asas enferrujadas
e eram temíveis os olhos búricos

os sapatos haviam conhecido todas as ruas
as sacolas haviam carregado curiosos pesos
os compassos haviam desenhado todos os círculos
os ombros haviam acumulado elegias

eu dançava para que as  acácias brotassem
eu dançava para que o doce desse ponto
eu dançava para que os vértices coincidissem
eu dançava pela alma dos afogados


me impressionavam as hagiografias
me impressionavam as vidas das criadas
a prataria escurecendo me impressionava
as joias na caixa me impressionavam muito
os dentes podres

a tabuada era um tratado de versificação
os espelhos tinham valsas embutidas
o tule sinonimizava voto e desejo
os desvãos do corpo eram grandezas incertas

e grudada nos rostos e colada às mãos e à pele
e às vozes mais delicadas mais desaplaudidas
ia      insistia     afincava
a aula magna do tempo

Alinho


É preciso voltar
às rosas mais antigas
e suas exuberâncias
e seus frêmitos de infinito
às palavras surgentes
às vozes prometidas
nos ecos do que amanhece

é preciso voltar
aos gatos que compõem a noite
às cálidas cantorias
ao flagrante do gosto
aos votos interrompidos
às garatujas nos muros
às cigarras já sem valia

voltar será sempre preciso
girar a chave de formato único
pisar nas tábuas lassas e confessas
ouvir o apelo do oco
a ascese dos líquens no tronco
fazer irromper acenos que
contem não só desfechos.

Os silêncios recuperam
a porosidade das rochas
o advento das peças da flor
o insabido da brasa
e a razão à palavra.

É preciso acalentar
o momento em que se resolve
a história do espinho

e saborear
o estremecimento.

declaração


que disparate tentar falar de amor
num poema______neste poema

não se conserva do outono
o adágio do pássaro
não se leva para além da memória
o delírio que a boca conheceu da fruta

sem nada saber de você
as cartas voltaram
os búzios se confundiram
a noite é pura orfandade
eu atravessei uma rua além do infinito
e eram areias e cansaço
e o tempo passa devagar tirando lascas da gente
e a chuva corta
e o tempo passa devagar
e escorrem as lembranças boas
que eu queria colar num álbum
escorrem numa lentidão de quase insanidade

sem nada saber de você
sei que quando se esfarelar
a última flor dessas que eu seguro
desapareci

de se fazer


quando desenlouqueceu
amélia pôs-se a queimar a comida
a adoçar a sopa
a ter vaidades ruidosas

queria dançar mazurcas
quadrilha___tango___burlesca
o que fosse______o que desse

queria pintar-se___alçar-se
exercer-se

viu sua cara no espelho
deu sua cara a bater

banhou-se___perfumou-se
batizou-se

e tratou de aprumar
as asas que a vida lhe deu

aquilo sim é que era voo de verdade

aos pés da letra


não sei você
mas eu por dentro estou quase num
nem existo______quase na lona no limbo
na face escura da lua
na rua a ver navios
quase imprevisto

não sei você mas eu
por dentro estou com um estrepe um engasgo
parece indeferimento
por dentro é rés movimento
é sem balanço___sem serventia
por dentro um estrago

não fosse o colibri aqui faz pouco
tinha me abstido dessa cena
tinha desistido desse filme
— espelho bissexto e algo turvo —
não fora o sol que entendi esplêndido
passava batido o entardecer vermelho

pela natureza desse ofício
pelo oficioso desse esforço
não sei você mas eu por dentro
sou só
_________texto