À Ilha de Maré - Termo desta Cidade da Bahia
Silva
Jaz em oblíqua forma e prolongada
A terra de Maré toda cercada
De Netuno, que tendo o amor constante,
Lhe dá muitos abraços por amante,
(...)
As plantas sempre nela reverdecem,
E nas folhas parecem,
Desterrando do Inverno os desfavores,
Esmeraldas de Abril em seus verdores,
E delas por adorno apetecido
Faz a divina Flora seu vestido.
As fruitas se produzem copiosas,
E são tão deleitosas,
Que como junto ao mar o sítio é posto,
Lhes dá salgado o mar o sal do gosto.
As canas fertilmente se produzem,
E a tão breve discurso se reduzem,
Que, porque crescem muito,
Em doze meses lhe sazona o fruito.
E não quer, quando o fruito se deseja,
Que sendo velha a cana, fértil seja.
(...)
As romãs rubicundas quando abertas
À vista agrados são, à língua ofertas,
São tesouro das fruitas entre afagos,
Pois são rubis suaves os seus bagos.
As fruitas quase todas nomeadas
São ao Brasil de Europa transladadas,
Porque tenha o Brasil por mais façanhas
Além das próprias fruitas, as estranhas.
E tratando das próprias, os coqueiros,
Galhardos e frondosos
Criam cocos gostosos;
E andou tão liberal a natureza
Que lhes deu por grandeza,
Não só para bebida, mas sustento,
O néctar doce, o cândido alimento.
De várias cores são os cajus belos,
Uns são vermelhos, outros amarelos,
E como vários são nas várias cores,
Também se mostram vários nos sabores;
E criam a castanha,
Que é melhor que a de França, Itália, Espanha.
(...)
Tenho explicado as fruitas e legumes,
Que dão a Portugal muitos ciúmes;
Tenho recopilado
O que o Brasil contém para invejado,
E para preferir a toda a terra,
Em si perfeitos quatro AA encerra.
Tem o primeiro A, nos arvoredos
Sempre verdes aos olhos, sempre ledos;
Tem o segundo A, nos ares puros
Tem tempérie agradáveis e seguros;
Tem o terceiro A, nas águas frias,
Que refrescam o peito, e são sadias;
O quarto A, no açúcar deleitoso,
Que é do Mundo o regalo mais mimoso.
(...)
Esta Ilha de Maré, ou de alegria
Que é termo da Bahia,
Tem quase tudo quanto o Brasil todo,
Que de todo o Brasil é breve apodo;
E se algum tempo Citeréia a achara,
Por esta sua Chipre desprezara,
Porém tem com Maria verdadeira
Outra Vênus melhor por padroeira.
Imagem - 00090001
In: OLIVEIRA, Manuel Botelho de. Música do Parnasso. Pref. e org. do texto Antenor Nascentes. Rio de Janeiro: INL, 1953. v.1. (Biblioteca popular brasileira, 2A Santa Maria Madalena aos Pés de Cristo
Soneto XCVII
Solicita, procura, reconhece,
com desvelo, com ânsia, com ventura,
sem temor, sem soberba, sem loucura,
a quem ama, a quem crê, por quem padece.
Ajoelha-se, chora, se enternece,
com pranto, com afeto, com ternura,
e se foi indiscreta, falsa, impura,
despe o mal, veste a graça, o bem conhece.
A seu Mestre, a seu Deus, a seu querido,
rega os pés, ais derrama, geme logo,
sem melindre, sem medo, sem sentido.
Por assombro, por fé, por desafogo,
nos seus olhos, na boca, no gemido,
água brota, ar respira, exala fogo.
In: OLIVEIRA, Manuel Botelho de. Lira sacra. Leitura paleográfica Heitor Martins. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1971. (Textos e documentos, 21)Às Lágrimas Devotas
Soneto CXIV
Lágrimas se derramem, que o pecado
sabem lavar com sentimento puro,
que não há nódoa negra, ou rastro impuro
que não seja das lágrimas lavado.
Chorou Davi, e foi santificado,
chorou Pedro, e ficou no amor, seguro,
Madalena chorou, e o fogo impuro
em puríssimo fogo foi mudado.
Ficam no amor as almas mais absortas
quando as lágrimas correm sucessivas
sendo portas do Céu, do pranto as portas.
Cresce a graça nas lágrimas ativas
que se as culpas mortais são águas mortas,
as lágrimas da dor são águas vivas.
Publicado no livro Lira sacra (1971).
In: OLIVEIRA, Manuel Botelho de. Música do Parnasso. Pref. e org. do texto Antenor Nascentes. Rio de Janeiro: INL, 1953. v.1. (Biblioteca popular brasileira, 2Anarda Vendo-se a um Espelho
Décima 1
De Anarda o rosto luzia
No vidro que o retratava,
E tão belo se ostentava,
Que animado parecia:
Mas se em asseios do dia
No rosto o quarto farol
Vê seu lustroso arrebol;
Ali pondera meu gosto
O vidro, espelho do rosto,
O rosto, espelho do Sol.
2
É da piedade grandeza
Nesse espelho ver-se Anarda,
Pois ufano o espelho guarda
Duplicada a gentileza:
Considera-se fineza,
Dobrando as belezas suas,
Pois contra as tristezas cruas
Dos amorosos enleios
Me repete dous recreios,
Me oferece Anardas duas.
3
De sorte que sendo amante
Da beleza singular,
Posso outra beleza amar
Sem tropeços de inconstante;
E sendo outra vez triunfante
Amor do peito que adora
Ua Anarda brilhadora,
Em dous rostos satisfeitos,
Se em um fogo ardia o peito,
Em dous fogos arde agora.
4
Porém depois, rigorosas,
Deixando o espelho lustroso,
Oh como fica queixoso,
Perdendo a cópia fermosa!
Creio pois que na amorosa
Lei o cego frechador,
Que decreta único ardor,
Não quis a imagem que inflama,
Por extinguir outra chama,
Por estorvar outro amor.
In: OLIVEIRA, Manuel Botelho de. Música do Parnasso. Pref. e org. do texto Antenor Nascentes. Rio de Janeiro: INL, 1953. v.1. (Biblioteca popular brasileira, 2Anarda Temerosa de um Raio
Bramando o céu, o céu resplandecendo,
belo a um tempo se via, e rigoroso,
em fugitivo ardor o céu lustroso,
em condensada voz o céu tremendo.
Gira de um raio o golpe, não sofrendo
o capricho de uma árvore frondoso:
que contra o brio de um subir glorioso
nunca falta de um raio o golpe horrendo.
Anarda vendo o raio desabrido,
por altiva temeu seu golpe errante,
mas logo o desengano foi sabido.
Não temas (disse eu logo) o fulminante:
que nunca ofende o raio ao céu luzido,
que nunca teme ao raio o sol brilhante.